Ricardo Pinto - Na fantasia à procura da verdade universal

Trabalhou em jogos de computador, mas a ficção que lhe interessava estava fora dos ecrãs. Inventou um mundo e escreveu uma saga em três volumes, o último publicado agora em Portugal. Não é só fantasia, avisa, é história alternativa.<br />
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Ricardo Pinto nasceu em Lisboa, em 1961, mas emigrou com a família quando tinha apenas seis anos. Cresceu na Escócia, onde vive, e há quase duas décadas que não vinha a Portugal. Desculpa-se da ausência prolongada dizendo que prefere visitar os países mais próximos quando já não tiver idade para correr o mundo de mochila às costas, mas foi sempre em português que falou do último livro da saga A Dança de Pedra do Camaleão. O Terceiro Deus é a conclusão da trilogia cujo primeiro volume saiu em 1999, obra de estreia de um informático com formação em matemática, que ultrapassou na literatura a rigidez das linguagens de programação.

O rigor com que criava universos para jogos de computador ficou-lhe na escrita minuciosa: é em pormenor que retrata a Comunidade das Três Terras, governada a partir do centro, Osrakum, por um Imperador Deus. Organizados em castas, todos os habitantes têm um papel definido desde o nascimento: a elite perpetua-se através de jogos de poder e leis implacáveis – serão cerca de oito mil, diz o autor – enquanto os restantes 270 milhões vivem na servidão, trabalhando para a riqueza dos mestres sem poder olhar-lhes a face, oculta com uma máscara. Quebrar as regras é arriscar-se a mutilações várias, da cegueira até à morte.

«Os livros são uma alegoria do mundo em que vivemos», admite Ricardo Pinto, que ousou contornar as convenções do género fantástico e não incluiu magia no enredo. «De certa maneira, este não é um livro de fantasia, é um livro de história alternativa», explica. Defende que o fantástico procura uma verdade universal, por isso recortou da história da humanidade os elementos que lhe interessavam para criar o cenário, sem o localizar no tempo e atribuindo-lhe uma geografia fictícia. Acima de tudo, «quis ter a coragem de mostrar como funcionam os nossos sistemas políticos», assume. Nas Três Terras, «os ricos estão rodeados por um muro, do lado de fora os pobres trabalham arduamente».

O massacre de Auschwitz foi referência durante a escrita, um «buraco negro» do século XX que não quis ignorar e o guiou na descrição de situações de violência. A trilogia, que lhe levou cerca de 12 anos, conduziu-o numa viagem de autoconhecimento: «Ao escrever, coloquei a minha escuridão fora de mim», confessa, um processo emocional exigente que o impede agora de se dedicar a nova obra deste alcance. Está a preparar um romance histórico e tem ideias para «mais vinte ou trinta», mas para já quer deixar «sarar» as marcas da fantasia.


A Dança de Pedra do Camaleão

Primeiro foram Os Escolhidos, em que Ricardo Pinto apresentava o mundo das elites e o jovem Carnelian, filho do mestre da Casa Suth, que regressa do exílio a Osrakum para decidir a escolha de um novo imperador. Seguiram-se Os Guardiães dos Mortos, um salto para fora das muralhas do território dos mestres, com Carnelian e o companheiro Osidian, Imperador Deus eleito, tentando sobreviver entre «os bárbaros» à emboscada preparada pelos que não queriam que tomasse o poder. O Terceiro Deus é o mais violento da saga, reconhece o autor, prometendo um «final apocalíptico». O enredo complexo não dispensa a leitura dos primeiros livros para compreender o último desta trilogia, povoado pelas mesmas personagens singulares: sábios, mestres e escravos distribuem-se por um mapa concêntrico, onde não há magia mas há ritual e sacrifício, fruto de uma «sensibilidade muito portuguesa» do escritor que se sente nesta história de mais de duas mil páginas.

ENTREVISTA

«Sou um construtor de mundos»

Qual foi o primeiro livro que escreveu?
Foi para um jogo de tabuleiro de ficção científica. O livro tinha as regras no final e fazia a descrição do mundo para que os jogadores entendessem as suas dinâmicas.

Como passou dessa escrita para esta aventura épica?
Aquele livro deu-me a ideia de começar a escrever, mas o que me levou a fazer algo tão complicado foram os jogos de computador que tinha desenhado antes. O que eu fazia era construir mundos, sou um construtor de mundos. Quis construir um mundo e torná-lo perfeito, daí ter demorado tanto a escrever.
Primeiro trabalhou no cenário, depois vieram as personagens?
Sim. Mas quando acabei o segundo livro percebi que a história era autobiográfica, na altura estava a ler Jung e descobri os arquétipos de que ele fala nos meus livros. Acabei por fazer uma terapia gestalt, só para me compreender, e se não a tivesse feito não teria conseguido acabar o trabalho, porque para resolver os problemas da personagem principal tinha de resolver os meus. Estava a escrever uma espécie de autobiografia mitológica, descobri que estava tudo a ser feito ao nível do inconsciente que, de alguma forma, o tinha planeado.

Mas escrever foi uma decisão deliberada?
Foi. Eu estava a trabalhar em jogos de computador para a Walt Disney e para a Sega, passei um ano em Oslo, depois na Califórnia. Dito assim parece engraçado, mas não era, era chato! Quanto terminei esses jogos, as companhias decidiram tirar as consolas do mercado, por isso acabaram por não sair. Dois anos de trabalho foram por água abaixo. A partir daí, decidi que os jogos de computador eram demasiado limitados para o que eu queria fazer. Em 1982, durante umas férias de Verão da universidade, já tinha escrito o primeiro volume – terrível em comparação com a versão final – mas as ideias estavam a germinar. Decidi fazer alguma coisa com elas.

Decidiu logo no início que seria uma trilogia?
Não, inicialmente era uma história em três partes. Mas começou a alongar-se…

Já tinha escolhido o final?
Sabia a direcção. Os portugueses também contornaram a África em direcção à Ásia e quando lá chegaram não sabiam como iria ser.

Foi uma descoberta também?
Exactamente. Eu trabalho de uma forma estranha, que não entendo perfeitamente, mas o que acontece é que concebo o mundo e existe um enredo muito intrincado na estrutura desse mundo. As terras, os rios, as três portas, Osrakum no centro, essa estrutura força muitas coisas a acontecer, dentro e fora das muralhas. Wagner, no seu Ciclo do Anel, usa o leitmotiv para uma ideia ou personagem. Eu faço algo parecido mas recorro a cores e feitios, daí que as formas circulares tenham uma implicação muito profunda na maneira como os livros se constroem e também no seu final.

Inventar um mundo foi também uma questão de liberdade criativa?
Acho que sim. O propósito da fantasia é descrever a verdade, mas uma verdade que não é a de Lisboa, de Portugal ou da Europa. Uma verdade que permanece e que é mais fácil de atingir se deslocarmos a história, para que não haja identificação. Se for um sítio que ninguém conhece, os leitores sentem tudo de forma diferente, mais profunda.

Procurava uma verdade universal?
Exactamente. Estes livros podem ser lidos hoje, podiam ser lidos há cinquenta anos ou daqui a cinquenta anos, não há diferença nenhuma. Se eu escrevesse um livro baseado na Lisboa de hoje, daqui a cinquenta anos seria um romance histórico. A Dança de Pedra não se altera.

Não é possível estabelecer um paralelo entre o mundo que criou e um período da história? O medieval, por exemplo?
Não, eu estava precisamente a tentar evitar isso. Gosto de Tolkien, que de alguma forma iniciou tudo isto, mas quem lhe sucedeu fez cópias fracas, o que se vê ali é a história medieval da Europa quebrada em três pedaços e depois reorganizada. O que eu faço é percorrer toda a história, não apenas a da Europa, quero ser mais universal. Pego no que conheço da história do mundo, quebro-o em pedaços muito pequenos e construo um mosaico. Quem se aproximar consegue reconhecer algo japonês, maia, até asteca, mas afastando-nos do mosaico, no geral, esses pedaços não são visíveis.

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