A Itália mobiliza-se para receber Asia Bibi. Nas redes sociais sucedem-se os apelos para a intervenção do governo e para assinar uma petição; no dia 20, os edifícios emblemáticos de Veneza vão estar iluminados de vermelho em homenagem à paquistanesa e aos cristãos perseguidos..Não deixa de ser surpreendente que a Itália queira acolher uma pessoa acusada de blasfémia e esteja cotada como um dos países cujo quadro legal mais penaliza os cidadãos no que diz respeito à blasfémia, como adiante se pode ler..A cristã Asia Bibi, também conhecida como Asia Noreen, foi acusada de ter feito comentários ofensivos ao profeta durante uma discussão causada por ter bebido água - para as colegas de trabalho muçulmanas o balde de água ficou impuro..Condenada à morte em novembro de 2010, a católica, de 53 anos, negou reiteradamente as acusações. O caso recebeu a atenção do Papa Bento XVI e do Papa Francisco, que neste ano recebeu a família de Bibi em audiência..Ao fim de oito anos no corredor da morte, foi absolvida de todas as acusações pelo Supremo Tribunal, numa decisão anunciada no dia 31 de outubro..Sucederam-se dias de manifestações convocadas pelo partido extremista Tehreek-e-Labbaik, cujos dirigentes já haviam advertido que a libertação da mãe de cinco filhos teria "consequências". O primeiro-ministro Imran Khan apelou à calma e classificou de "repugnantes" os protestos a exigir o enforcamento de Asia Bibi. Mas dois dias depois, e milhões em prejuízos, o seu governo firmou um acordo com os fundamentalistas, ao permitir que fossem instauradas ações legais para impedir a saída da mulher do país e da decisão de libertá-la..Ainda assim os manifestantes voltaram às ruas em várias cidades..Advogado exilado na Holanda.O advogado de Asia Bibi, Saif Mulook, foi ameaçado de morte e teve de abandonar o país. A Holanda concedeu-lhe asilo, como foi anunciado pelo ministro dos Negócios Estrangeiros, Stef Blok..Os Países Baixos não têm o crime de blasfémia, mas no passado houve quem fizesse justiça pelas suas mãos. O realizador Theo Van Gogh foi assassinado em 2004 porque o seu filme sobre a opressão das mulheres na sociedades islâmicas, Submissão, foi considerado um insulto ao islão, de acordo com o depoimento do homicida, um holandês de ascendência marroquina..Asia Bibi acabou por ser libertada na quarta-feira da prisão da cidade de Multan. Na quinta-feira, foi noticiado que estaria num avião com destino desconhecido. Mas de acordo com o porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros, Mohammad Faisal, Bibi está "totalmente protegida num lugar seguro no Paquistão". "O mandado está no tribunal. Quando isso for decidido, Asia Bibi pode ir para qualquer lugar que quiser, é uma cidadã livre. Se quiser ir para o estrangeiro não há problema nenhum", cita a Reuters..A Ajuda à Igreja Que Sofre, organização dependente da Santa Sé, informou que Bibi pôde ver o seu marido, Ashiq Masih, num local não revelado. A instituição adiantou ainda que a família aguarda pela emissão de vistos, mas recusou revelar para que país por razões de segurança..Capturados pelo fascismo islâmico."É um caso gritante de perseguição religiosa, de violação tremenda dos valores fundamentais da pessoa humana. É absolutamente aterrador porque no fundo Asia Bibi foi condenada por ter bebido um copo de água. Fala-se agora muito de fascismo. O Paquistão tem uma sociedade capturada pelo fascismo islâmico, sem exagero nas palavras", comenta o advogado José Ribeiro e Castro..Em Portugal, o antigo presidente do CDS tem sido uma das vozes mais ativas a falar sobre o caso da paquistanesa, tendo inclusive defendido que Portugal a acolha, bem como à sua família..Para o ex-deputado, a comunidade internacional tem de ajudar a sociedade paquistanesa a libertar-se da pressão do "poder fascista" que através de "hordas fanatizadas do ponto de vista ideológico" exercem "uma pressão social tremenda contra o Estado e contra a justiça, capturando parte significativa do país"..Ribeiro e Castro crê que "ao longo destes oito anos os tribunais foram tomando decisões com medo" desses grupos. "Mesmo esta decisão histórica, que eu saúdo, foi tomada no início de outubro e mantida secreta para se poderem preparar para a reação. Os juízes sentem-se condicionados quando temos presente que o governador da província [do Punjab, Salman Taseer], quando tomou posição sobre o assunto, foi assassinado pelo guarda-costas, e depois quando um ministro [dos Assuntos das Minorias, Shahbaz Bhatti] também o foi", comenta..Blasfémia, heresia, apostasia.As três ações estão relacionadas com o que é tomado por desrespeito de uma determinada fé ou crença. Se a blasfémia é o que insulta o sagrado, a heresia é a crença em algo contrário à ortodoxia; e a apostasia é quando alguém abjura a fé da religião que professava. No quadro legal europeu a heresia e a apostasia há muito não são considerados crimes, ao contrário do Médio Oriente e do norte de África, onde a apostasia é crime em 14 países. Mas a blasfémia ainda o é em mais de uma dúzia de Estados do Velho Continente..Na véspera de a República da Irlanda ter acabado com o crime de blasfémia, uma decisão de 25 de outubro do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) pode abrir a porta a interpretações equívocas. Uma mulher austríaca viu confirmada a condenação à multa de 480 euros, por parte de um tribunal do seu país, por ter chamado Maomé de pedófilo por ter casado com uma criança. O tribunal com sede em Estrasburgo fundamentou a decisão na "preservação da paz religiosa" na Áustria.."Os crimes de blasfémia ou, digamos, de respeito pela fé religiosa alheia existem, como existe o crime de abuso de liberdade de imprensa, de difamação, de calúnia, etc. O que não é aceitável, nos países onde existe, é a tipificação excessiva do crime. No caso do Paquistão é a morte. Nos últimos anos foram executadas mais de 50 pessoas, o que é inaceitável", considera Ribeiro e Castro. Sobre o caso da Áustria, afirma ser "revelador que a pressão intelectual e discursiva do islamismo e do fascismo islâmico atinge também tribunais europeus e o próprio TEDH".."Não vejo matéria para condenar a mulher. Isso fere o sentimento de igualdade da população e vai alimentar o movimento da extrema-direita. É preocupante", conclui..Irlandeses decidiram em referendo."Má thoilíonn tú, cuir X sa chearnóg seo" foi a frase com que 64,85% dos irlandeses se identificaram no dia 26 de outubro. Chamados às assembleias de voto para decidirem se aprovavam a 37.ª emenda à Constituição, optaram por retirar o crime de blasfémia da lei fundamental: "Se aprova, marque com um X neste quadrado.".A República da Irlanda juntou-se a Malta e a Dinamarca na Europa, países que recentemente mudaram a legislação e deixaram de contemplar o crime de insultar ou de se referir de forma considerada ultrajante a Deus e a outros temas sagrados..Refira-se, no entanto, que a Europa ainda contribui com 13 países para a lista de 70 que têm leis de blasfémia, a começar pela Espanha e terminando na Rússia..Segundo o mais recente relatório sobre as leis de blasfémia no mundo, da autoria da Comissão sobre a Liberdade Religiosa Internacional, organismo governamental dos Estados Unidos, a Itália é o país europeu mais mal classificado na lista dos que têm as leis mais severas..O ranking foi elaborado com uma ponderação baseada no grau de desvio dos padrões internacionais de liberdade de expressão, da legislação dúbia e vaga, e da discriminação contra grupos (o que inclui religião do Estado). Os três indicadores que aumentam mais as pontuações são a gravidade das penas, a discriminação contra grupos e as proteções do Estado à religião..O país mais repressivo é o Irão, seguido de Paquistão, Iémen, Somália e Qatar. No caso dos dois primeiros, as leis de ambos os países impõem a pena de morte contra indivíduos que insultem o profeta Maomé..Itália ao lado do Egito.A Itália está num surpreendente sétimo lugar, com a mesma pontuação que o Egito. Mas as realidades no Egito e na Itália são muito distintas, reconhece uma nota do mesmo relatório. "As mais recentes acusações de blasfémia conhecidas em Itália ocorreram em 2009, mas o acusado foi absolvido três anos depois." Já no Egito, a situação deteriorou-se e há novos processos. De acordo com grupos egípcios de direitos humanos, houve pelo menos 21 novos casos de blasfémia entre o início de 2015 e o final do período de relatório, fevereiro de 2016.."Apesar do derrube do presidente Mohamed Morsi, em 2013, e da subsequente liderança mais 'secular' do presidente Abdel Fattah al-Sisi, prisões e processos por blasfémia continuam a ser frequentes. Relatos da imprensa dão conta de que a repressão sob ordens do presidente al-Sisi fazem parte do esforço do regime para obter apoio público e de se reclamar como guardião da religião após a queda da Irmandade Muçulmana do poder", explicam os relatores do organismo norte-americano..Por seu turno, a legislação italiana foi responsável pela pontuação. Dois artigos do Código Penal proíbem a ofensa à religião, punível com uma pena de prisão. "Enquanto os especialistas jurídicos continuam a discutir o estatuto dos artigos 402 a 406, essas disposições ainda permanecem formalmente na lei italiana." Mas não só: Roma também foi penalizada pela proteção do Estado à religião porque continua a atribuir à Igreja Católica "uma série de privilégios, benefícios e subsídios do governo, embora a Igreja seja independente"..Relator da ONU quer o fim das leis da blasfémia.No ano passado, o relator especial sobre liberdade religiosa da comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas defendeu o fim das leis contra a blasfémia e de outras que cerceiam as liberdades do indivíduo.."Exorto os Estados que ainda têm leis de blasfémia a revogá-las por causa de seu impacto sufocante no gozo do direito à liberdade religiosa ou de crença, e da capacidade de se empenhar num diálogo saudável sobre religião", disse Ahmed Shaheed na véspera da apresentação do relatório.."Hoje, três quartos da população mundial vivem em países com restrições ao direito à religião ou crença ou um alto nível de hostilidade social que envolvem religião ou crença. Em muitos casos - prossegue - essas limitações ou proibições resultam em intolerância religiosa que não provêm de nenhuma ação governamental, mas de pressões dentro da sociedade em que ocorrem.".A violência emanada pelos grupos extremistas em nome da religião ou crença é uma "ameaça real que deve ser enfrentada", Porém, alerta, a forma como os governos a enfrentam nem sempre é a mais adequada. "O que muitas vezes é esquecido é o papel que muitos governos desempenham na exacerbação [da intolerância], alimentando e possibilitando um ambiente em que o tal extremismo pode florescer", concluiu o maldivo..Ahmed Shaeed é o quinto especialista nestas funções. O primeiro relator especial sobre intolerância religiosa (assim se chamava à época) da comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas foi o português Ângelo d'Almeida Ribeiro. O mandato deste advogado defensor dos direitos humanos iniciou em 1986 e terminou em 1993.