Revolta
Depois de vários minutos de boca aberta, o André Tomás ficou com os maxilares doídos. Abria e fechava a boca, massajava as bochechas, encerrava com intensidade as pálpebras, numa série de estranhos exercícios faciais próprios de quem percebe do assunto e sabe o que faz. Mesmo assim, lançou o desabafo "Estar de boca aberta, a fazer muita força nos olhos e a respirar ao mesmo tempo, custa!"
Há dois meses que o jovem de 13 anos, aluno do 8.º ano da E.B. 2+3 João da Rosa, em Olhão, vive a pele de um bailarino. "Profissional", como faz questão em frisar, "porque aqui é tudo a sério". Ao cansaço de quem tinha acabado de fazer o primeiro ensaio corrido de um espectáculo, sucedeu, contudo, de imediato, um enorme sorriso nos lábios, próprio de quem tem a sen- sação do dever cumprido. "Custou, mas foi. Agora, começa o bichinho dos nervos pela estreia", diz André ao DN, sublinhando que "é a primeira vez na vida que este grupo vai estar num palco. E ainda por cima no Teatro Municipal de Faro, que é tão grande e tem tanta gente a assistir!"...
Desde o princípio de Outubro que o pavilhão da João da Rosa se tornou na segunda casa do André e dos nove colegas dos 7.º, 8.º e 9.º anos, seleccionados para O Grito do Peixe, o espectáculo de Clara Andermatt, que hoje se estreia (21.30) no Teatro de Faro (repete amanhã à mesma hora e domingo, às 17.00).
O Grito do Peixe fecha com chave de ouro a programação de dança de Faro - Capital Nacional da Cultura 2005, que convidou Andermatt a criar um espectáculo original, envolvendo estudantes de Olhão. A coreógrafa mudou-se de armas e bagagens para a cidade algarvia há dois meses e meio e, ao mesmo tempo que recrutava os músicos, bailarinos profissionais e alunos da E.B. 2+3 João da Rosa, o estabelecimento proposto pela autarquia local, começou a fazer o "reconhecimento do terreno".
"Optei por me debruçar sobre a alma da cidade, como ponto de partida para o projecto", refere ao DN, salientando que a tarefa não foi difícil, porque "as características de Olhão são comuns a muitas outras cidades portuguesas, mas com a diferença de ali estar tudo à flor da pele, mais à vista". "Esta não é uma cidade normal do Algarve", considera Andermatt.
A justificação parte de quem conhece bem melhor a realidade local. "Há coisas boas nesta cidade, como a ria Formosa e as praias, mas sobretudo más, nomeadamente o racismo, a toxicodependência, a prostituição, a violência, a insegurança", sustenta a Dora Sousa, de 14 anos, do 9.º ano, lembrando que na noite anterior a sua escola havia sido, de novo, assaltada.
Não será difícil, perante este quadro, perceber o que significa O Grito do Peixe. Para os alunos, é um "grito de revolta, transmitido pelo corpo, música e palavras". Na perspectiva de Clara Andermatt, trata-se de um "grito interior, que não se ouve, porque há uma certa dificuldade da sociedade em ouvi-lo".
O espectáculo não tem, por isso, "uma narrativa linear", porque é "uma história dentro de outra história, um cruzar de situações". "A peça está cheia de simbolismos e contrastes, da beleza do mundo e simultaneamente da violência que sentimos e presenciamos a cada instante, da ordem e da desordem, da harmonia e da desarmonia".
Os dez alunos dançam, falam, gritam, cantam e interpretam lado a lado com os cinco bailarinos profissionais, numa "partilha total de emotividade", como salienta Clara Andermatt. Trabalhar com o grupo de crianças foi, aliás, um dos "maiores desafios" para coreógrafa e bailarinos. "Foi muito bonito ver a rapidez com que eles entraram neste universo, descobrindo- -se e crescendo", opina Andermatt. À consideração, o grupo discente remata "Nós adoramos a Clara. Aturou as nossas maluquices e ainda por cima deu-nos a oportunidade de estar em cima de um palco, que é uma coisa extraordinária."
Depois de Faro, O Grito do Peixe segue para o Teatro Garcia de Resende, em Évora, e Centro Cultural de Belém, em Lisboa. "Daqui a um bocadinho, já andamos lá por fora... no estrangeiro", conclui, esperançado, o André Tomás.