Retratos da Mafia americana

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Os Intocáveis (1987), de Brian De Palma, e Tudo Bons Rapazes (1990), de Martin Scorsese, constituem, com Era Uma Vez na América (1984), de Sergio Leone, a trilogia de ouro sobre a Mafia americana realizada na década de 80. Para além da temática, os três filmes têm outros dois pontos em comum: Robert De Niro no elenco e, agora, estarem todos disponíveis em óptimas edições especiais em DVD. Tanto Os Intocáveis como Tudo Bons Rapazes haviam sido lançados anteriormente em formato digital, mas como vem sendo hábito na gestão comercial dos filmes «de prestígio», eles surgem agora em edições de luxo, para alegria dos coleccionadores e irritação de quem investiu nas primeiras versões.

Contudo, se esquecermos os ambientes mafiosos e Robert De Niro, Os Intocáveis e Tudo Bons Rapazes têm um mundo de diferenças a separá-los. É verdade que a cena em que De Niro, na pele de Al Capone, esmaga a cabeça de um padrinho com um taco de basebol é de causar inveja a Coppola ou Scorsese, mas de resto Os Intocáveis está muito mais próximo da matriz do western tradicional do que do filme de gangsters. O combate entre Al Capone e «os intocáveis» de Eliot Ness é representado de forma absolutamente heróica, com os «maus» de um lado e os «bons» do outro, todos eles capazes de encaixar num tipo cinematográfico bem definido (o veterano, o pistoleiro, o cérebro, etc.), e sem as zonas cinzentas que fazem parte do património do género, desde os tempos da série B.

Esta simplicidade estrutural - mesmo contando com um argumento de David Mamet - faz com que o filme não possa ser incluído na galeria das obras-primas, onde se encontram as criações de Cop-pola, Scorsese ou mesmo o último Leone. Mas Os Intocáveis está cheio de detalhes que o valorizam: a música de Ennio Morricone, os fatos Giorgio Armani, e sobretudo as abundantes citações cinéfilas de De Palma, a mais (justamente) referenciada das quais é a sequência final na Grand Station de Chicago, com um carrinho de bebé a pilhar de forma notável a famosa sequência das escadas de Odessa, no Couraçado «Potemkin» de Eisenstein.

Esta edição especial de Os Intocáveis tem apenas um disco mas está bem recheada de extras, divididos por pequenos documentários temáticos que contam com depoimentos actuais de De Palma e do produtor Art Linson, para além de imagens da época de Sean Connery (que ganhou com este filme o Óscar de melhor actor secundário) ou do então relativamente desconhecido Kevin Costner.

Também Tudo Bons Rapazes utiliza a estrutura dos pequenos documentários temáticos (o mais significativo dos quais é «Getting Made», de meia hora), num segundo disco de extras (ambos os filmes têm os extras legendados em português) com pouco material, mas valioso. Contudo, é no primeiro disco que estão guardadas as preciosidades: o filme, claro, mas também os dois comentários áudio, ambos excelentes: o primeiro com actores e equipa técnica, que inclui Scorsese, Ray Liotta, Lorraine Bracco e alguns outros; e o segundo intitulado «Polícia e Ladrão», onde o verdadeiro arrependido, Henry Hill, e o polícia com quem ele fez o acordo para ser testemunha de acusação, Ed McDonald, traçam paralelismos entre o filme e a vida real. E Hill é peremptório: o filme é «99 por cento verdadeiro». Verdadeiro ou não, ele é uma obra--prima do cinema americano, com Scorsese inspiradíssimo neste retrato desencantado do submundo da Mafia, ao qual a série Os Sopranos veio mais tarde buscar muitas ideias e boa parte do elenco.

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