Retrato do escritor lamechas

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"It was love, the furnace into which everything was dropped."

James Salter

Escrever é um ato solitário, por vezes egoísta, pode conter impulsos de vaidade, traços de narcisismo. Quando se escreve um romance está-se numa espécie de transe, em que o fluxo da consciência corre imparável - mesmo durante o sono. Podemos estar num jantar de família, a ver um filme, a andar na rua, e o livro, as personagens, os nós por desatar no enredo, tomam conta da nossa vida. É como uma longa viagem intergaláctica. Somos os únicos passageiros na nave, e o universo vai passando nas janelas e na intermitência dos ecrãs coloridos.

Não é um drama, não é uma sina - só escreve quem quer -, e nem sei se é uma espécie de mística, como acreditam alguns. Mas é, sem dúvida, um exercício de canibalismo, e um ofício hipnótico, em que estamos virados para nós mesmos durante muitas horas por dia, ao longo de meses, senão anos.

Contudo, com o passar do tempo e dos livros, sei que esse ofício aparentemente solitário e autocentrado é, mais que tudo, ou pelo menos para mim, um gesto de partilha, de chegar ao outro. Não falo apenas do prazer ocasional que é alguém dizer que gostou do nosso livro, ou quando um segurança do aeroporto nos manda parar, com um ar desconfiado, para um interrogatório breve: "Senhor Hugo Gonçalves?" - pausa que me fez pensar "O que é que eu fiz desta vez?", e ele continuou, como se prestes a arrancar um quilo de cocaína da minha bagagem de mão: "Gosto do que escreve." Também já me disseram: "Li o teu romance, era um bocado merdoso."

Claro que, para quem passa tanto tempo na toca de si próprio, a crítica é uma boa lição de modéstia e a lisonja uma recompensa celebrada - até porque os direitos de autor não sustentam muitas famílias. Falo antes dessa ideia de que algo que não é nada, que não tem matéria além de papel e tinta, que são palavras atrás de palavras, enfim, que tudo isso seja capaz de causar um efeito noutra pessoa. Não se trata de uma questão de poder ou de manipulação do outro, mas de partilha. Uma forma de pertença: somos todos iguais, temos todos os mesmos problemas, andamos todos à procura do mesmo, a fugir das mesmas coisas, embatendo nas arestas afiadas da existência enquanto tentamos enganar a morte e aproveitar a beleza possível.

Um escritor dificilmente tem oportunidade de observar a reação e as emoções do leitor diante do seu livro. Um cineasta pode fazê-lo, um pintor também, um músico, um ator. O público do escritor está longe. Mas essa distância é enganadora, porque, enquanto leitor, houve livros que encaixaram ou implodiram peças do meu coração e do meu cérebro, que me acertaram ou aceleraram o passo, que me fizeram ficar mais perto da plenitude da experiência de ser humano. Sei que pareço um pastor desfiando um sermão sobre a partilha e a humildade, mas, entre tantas coisas que a literatura pode ser, é, certamente, partilha e humildade.

Não queremos estar sozinhos, ainda que essa seja, inevitavelmente, a nossa condição derradeira. Há, no entanto, escritores misantropos, isolados em cabanas ou que desaparecem do mapa sem dar uma entrevista ou assinar um livro. Há quem consiga viver apenas escrevendo para a gaveta. Também poderia escrever apenas para a gaveta - já o fiz tantas vezes -, mas a experiência da escrita sem a leitura é como comparar a masturbação com uma noite de sexo tropical. Por mais que o escritor, enquanto trabalha num romance, escreva para si próprio - e é a morte do artista se começa a pensar naquilo que público gostaria de ler -, a literatura precisa de um jogo de espelhos, uma dança a dois, alguém que faça viver a história além da cabeça do escritor.

Antes tinha a mania de dizer que não vivia para escrever, mas que escrevia para viver melhor. Hoje, prefiro acreditar que, ainda que passe tantas horas a sós, escrevendo ou pensando no que escrever, faço-o, também, para não estar tão sozinho. Não é um escape da solidão, ela é necessária a quem escreve, mas antes uma forma de acercamento dos outros. É um contrassenso, eu sei, e, no entanto, é o melhor que consigo.

Há uns dias, o André e a Rita, com pouco mais de 20 anos, apresentaram-se e, constrangidos, vieram dizer-me que tinham uma história de amor lamechas para contar. Numa viagem romântica na Croácia, decidiram ler um dos meus livros em simultâneo, ele lia uma frase, e depois ela lia outra. Fizeram-no durante todas as férias. Disse-lhes que não estivessem envergonhados porque, como se sabe, todas a cartas (e aventuras) de amor são ridículas. E lamechas - tão lamechas como a alegria de saber que um dos meus livros faz agora parte de uma história de amor.

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