Resta-nos sempre Smith
A 10 de outubro de 2014 comecei a partilhar convosco a minha vida, a convite do meu amigo André. O meu primeiro artigo no Diário de Notícias chamava-se "Em Busca de Adam Smith", o que me pareceu apropriado para alguém que, como eu, se diz um liberal em termos económicos, o que significa basicamente ser conservador nos costumes - alguém que reverencia a herança do passado que custou tanto a construir - e tem sempre como referência moral o velho escocês. O pai da economia clássica. Agora que vou uns dias de férias, volto a ele, já que ninguém foi tão eloquente a descrever aquilo que veio a denominar-se "a lei dos efeitos não intencionais". A ideia subjacente a esta lei ou a este princípio é a convicção de que a natureza humana é dominada por uma ordem espontânea. Uma sucessão imaterial de tarefas que não são - que não podem ser - precipitadas por uma pessoa ou entidade central mas que resultam sim de milhões de ações que operam sobre a base de estímulos e desincentivos que as mesmas relações sociais evidenciam.
Margaret Thatcher tinha uma expressão gloriosa: "Não existe sociedade, só há indivíduos." Estou completamente de acordo. Ou, dando lenha aos que defendem o contrário, para mim a sociedade é sempre um organismo vivo no qual todos os participantes estão motivados pelos seus próprios interesses e atuam de acordo com eles.
Como Adam Smith, que prezava os valores morais enraizados e robustos, defendia não querer isto dizer que os indivíduos não queiram saber do destino dos seus vizinhos. Pelo contrário, a pulsão íntima das pessoas é sentirem-se parte de um futuro comum.
Infelizmente, a influência do socialismo no último século tem sido um empecilho enorme ao progresso da humanidade. O socialismo destruiu a solidariedade genuína, aquela que implica empenho e custos pessoais, endossando essa tarefa ao Estado, que é um ser abstrato, um monstro, com o efeito perverso de nos ter convertido em perfeitos irresponsáveis, em pessoas que acreditam ter as dívidas com os outros saldadas pelo mero ato de pagarmos impostos. O socialismo postula - quando governa, impõe - a solidariedade coerciva que é, por natureza, frágil, e que, como se diz na minha terra, tem pouca graça. Primeiro porque implica sanções para quem não a exerce; segundo porque, não sendo voluntária, não tem mérito.
Foi Adam Smith quem introduziu a chamada "lei dos efeitos não intencionais" no cerne da análise económica. Foi ele que a expôs da forma mais viva e crua: "Não é a benevolência do talhante, do homem da cervejaria, do padeiro que garante que temos comida, mas antes a consideração do interesse próprio de cada um deles. Não invocamos os seus sentimentos humanitários mas sim o seu amor por si mesmos, não lhes falamos das nossas necessidades mas das vantagens que eles podem obter." O que este parágrafo aparentemente brutal quer dizer é que o interesse pessoal constitui o motor da cooperação coletiva, no sentido em que numa sociedade aberta cada um, ao procurar a sua própria satisfação, procura necessária e inevitavelmente o bem-estar do próximo.
Mas é claro que nem em Espanha nem em Portugal todos pensam o mesmo. No meu país, nas últimas eleições municipais e autonómicas - e quem sabe não acontecerá o mesmo nas próximas eleições legislativas de novembro - prosperaram as teses que consideram que o capitalismo é um grave problema. Por exemplo Rafael Climent, o novo conselheiro económico da Comunidad Valenciana, uma das mais ricas de Espanha -, aliado do partido radical Podemos, fez uma viagem a Singapura. E durante a sua estada concluiu que "o capitalismo mata". Que "a competitividade que nos leva a querer ser o melhor é negativa, pois leva-nos a sermos cruéis com os adversários". E que "é preciso procurar sistemas de convivência coletiva". Eu não entendo estas reflexões, porque se a competência profissional funcionasse realmente jamais a Comunidad Valenciana teria de aturar um conselheiro económico como o senhor Climent. Mas evitando o argumento ad hominem, a questão é que todos os sistemas de convivência coletiva que foram tentados na história fracassaram, e mais, resultaram em milhões de mortos.
Singapura, em contrapartida, ocupa os primeiros lugares em qualquer tipo de ranking: no rendimento per capita, na qualidade do ensino, na liberdade económica, em atração de investimento... E em bem-estar comum. Naturalmente, há desigualdades. Mas estas só são relevantes para os vizinhos de Singapura, ao contrário do que se passa com os medíocres cidadãos europeus. Lá, o que é valorizado é o facto de ser uma terra de oportunidades onde se pode prosperar, com empenho e trabalho no duro. O que mata é o socialismo, que acaba com a capacidade pessoal para criar riqueza e dá lugar a uma pirâmide social que contraria a ordem natural espontânea, na qual os que estão no topo não são os mais talentosos ou os que mais se esforçam e sacrificam mas antes os amigos do poder estabelecido ou os beneficiados pelo igualitarismo imposto, que dá lugar à mediocridade geral.
Na sua História da Sociedade Civil, Adam Ferguson destacava que o que acontece nas sociedades é "consequência das ações humanas e não do desígnio humano, pelo que devemos receber com cautela as tradicionais histórias sobre os legisladores da antiguidade e os fundadores dos Estados". Aqueles que ganharam muitas das últimas eleições no meu país e que têm condições para governar Espanha, à semelhança do que acontece em Portugal, são arrogantes ao ponto de pensar que, como dizia Hayek, são capazes de construir um mundo melhor do que o que resulta da ordem espontânea - no qual o governo se limita a assegurar as livres competências, a manter um Estado magro e a limitar ao máximo os impostos. Mas não são muitas as coisas boas executadas por aqueles que dizem servir apenas o interesse comum. Há que desconfiar destes vendedores de banha da cobra. Fugir deles como da peste.
O surgimento de novas formações políticas no meu país, a sua chegada às instituições e as suas decisões erráticas e controversas estão muito longe de ser tranquilizadoras, porque potenciam uma estrutura de incentivos perversa, algo que tem que ver com o seu relativismo e a ignorância das regras de funcionamento da economia. Em Espanha, no campo económico, os partidos de esquerda postulam um rendimento mínimo universal - merecido simplesmente por se nascer - capaz de arrasar a cadeia de incentivos que resulta no progresso da humanidade. Ou desejam dar poder aos sindicatos contra a iniciativa individual. Ou querem mais gastos, o que significa mais impostos, limitando a margem de manobra dos cidadãos nos resultados dos seus esforços pessoais. Agora que, com o sofrimento que a maioria da população espanhola e portuguesa teve de suportar e os sacrifícios que foi obrigada a fazer, os cortes e as reformas começam a ter efeito na recuperação económica e no emprego, será um equívoco pôr de lado os ensinamentos que nos deixou Adam Smith. Passem um bom verão.