"A ilusão do rigor dos projectos de lei sobre a eutanásia"
Tem sido recorrentemente afirmado que os projectos de lei respeitantes à despenalização e à legalização da eutanásia e do suicídio assistido são muito rigorosos e que só em casos verdadeiramente excepcionais ou especiais é que será possível "antecipar" a morte de uma pessoa a seu pedido.
Nesse sentido, por exemplo, no passado dia 12 de Julho, na edição online do Diário de Notícias, foi publicado um artigo de opinião intitulado "O suicídio clinicamente assistido na Constituição que nos rege", da autoria do Professor David Duarte, da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Veio esse artigo na sequência de ter sido tornada pública uma declaração conjunta subscrita por 15 Professores Catedráticos de Direito Público, datada de 15 de Junho, na qual se defende que os referidos projectos de lei mostram-se contrários à Constituição Portuguesa por violarem, designadamente: em termos flagrantes, o primeiro dos direitos fundamentais do ser humano - o direito à vida - e a garantia da sua inviolabilidade (artigo 24º); o direito à integridade pessoal e a garantia da sua inviolabilidade (artigo 25º) e, bem assim, a dignidade da pessoa humana, no contexto de uma sociedade solidária e de um Estado de direito baseado no respeito e garantia dos direitos e liberdades fundamentais (artigos 1º, 2º, 9º, 12º, 13º e 18º); e, ainda, o direito à protecção da saúde e o dever de a defender e promover e as inerentes vinculações do Estado a implementar o acesso de todos os cidadãos aos cuidados médicos, bem como o dever genérico de protecção dos mais frágeis (artigo 64º).
Na opinião do Professor David Duarte, e referindo-se apenas ao suicídio clinicamente assistido, o facto de tal declaração ser estritamente conclusiva e de não conter quaisquer razões explicativas, "não impede, no entanto, que se possa dizer que o conteúdo da declaração é tecnicamente equívoco e, independentemente dela, que há bons fundamentos para negar que a acção em causa seja (sequer) constitucionalmente vedada, o que também é válido, porventura mais ainda, para a sua descriminalização", apresentando os argumentos em que sustenta tais conclusões.
No presente artigo não se pretende discutir e/ou rebater os argumentos do Professor David Duarte sobre o assunto: isso é matéria para os Constitucionalistas. O Professor David Duarte tem, naturalmente, direito a ter a sua opinião, opinião essa que deve ser respeitada, ainda que se possa discordar da mesma, como é o caso. Aquilo que motiva o presente artigo é de outra índole. Prende-se com a circunstância de, no referido artigo, terem sido feitas referências ao teor dos projectos de lei em causa que não se mostram conformes com os mesmos.
Com efeito, no mencionado artigo é dito que, "Sem prejuízo das diferenças entre os projectos, o denominador comum dos mesmos é o de se criar um conjunto extremamente exigente de condições, conjuntamente suficientes, para que um profissional de saúde deixe de ser criminalmente punido quando, de livre vontade, auxilia o suicídio de quem não o pode fazer por si. Entre aquelas condições estão, desde logo, tratar-se de uma decisão livre, de a pessoa padecer de uma doença efectivamente terminal, e de este quadro ser clinicamente comprovado em múltiplas instâncias. Trata-se, portanto, de uma antecipação da morte, sujeita a escrutínio rigoroso, em que a intervenção de um terceiro serve apenas para materializar a vontade do doente terminal."
Ou seja, todos os projectos de lei supostamente criariam um conjunto extremamente exigente e suficiente de condições, incluindo-se, entre essas condições, tratar-se de uma decisão livre, padecer a pessoa de uma doença efectivamente terminal e de esse quadro ser clinicamente comprovado em múltiplas instâncias, tratando-se, assim, de um processo sujeito a um escrutínio rigoroso.
Sucede, porém, que tal não é o que decorre ou consta dos projectos de lei em causa - razão pela qual se justifica e até se impõe, desde logo, o presente artigo -, pois nenhum dos projectos de lei contém condições exigentes e/ou suficientes; nenhum dos projectos de lei limita a admissibilidade da apresentação do pedido de antecipação da morte a pessoas que padeçam de uma doença terminal; e em nenhum dos projectos de lei o quadro estabelecido é clinicamente comprovado em múltiplas instâncias, não se tratando, por isso, de um processo sujeito a um escrutínio rigoroso. Bem pelo contrário.
Com efeito, os referidos projectos de lei, sem excepção, independentemente dos conceitos e expressões utilizados e dos requisitos e condições neles estabelecidos, enfermam de uma enorme falta de rigor e precisão, em resultado das múltiplas inexactidões, deficiências e lacunas de que padecem, não estabelecendo sequer procedimentos que assegurem um mínimo de rigor, exigência, certeza e segurança na aplicação da lei aos casos e nas condições nela própria previstos.
Nenhum dos projectos de lei é, assim, rigoroso, exigente ou restritivo - quer ao nível dos requisitos de aplicação da lei, quer ao nível dos procedimentos administrativos estabelecidos -, não podendo, por isso, afirmar-se, e muito menos garantir-se, que só em casos realmente excepcionais ou especiais é que será possível "antecipar" a morte de alguém a seu pedido.
E para se demonstrar que assim é, importa começar por recordar quais são os requisitos previstos em alguns desses projectos de lei (na impraticabilidade de, nesta sede, referir todos), mais precisamente nos projectos de lei do PS e do BE (que foram os mais votados na generalidade e que são muito similares), cujo cumprimento é suposto ser de verificação obrigatória:
- "1. Para efeitos da presente lei, considera-se eutanásia não punível a antecipação da morte, por decisão da própria pessoa, maior, em situação de sofrimento extremo, com lesão definitiva ou doença incurável e fatal, quando praticada ou ajudada por profissionais de saúde. 2. O pedido subjacente à decisão prevista no número anterior obedece a um procedimento clínico e legal, correspondendo a uma vontade atual, séria livre e esclarecida" (artº. 2º do Projecto de Lei do PS);
- "1. O pedido de antecipação da morte deverá corresponder a uma vontade livre, séria e esclarecida de pessoa com lesão definitiva ou doença incurável e fatal e em sofrimento duradouro e insuportável. 2. O pedido referido no número anterior apenas poderá dar origem a um procedimento clínico de antecipação da morte se feito por pessoa maior, capaz de entender o sentido e o alcance do pedido e consciente no momento da sua formulação." (artº 2 do Projecto de lei do BE).
Para além de a utilização de conceitos indeterminados, vagos e imprecisos, como requisitos da aplicação da lei, não permitir uma verificação objectiva e, assim, rigorosa dos mesmos, das citações feitas decorre, desde logo, que o pedido de "antecipação" da morte poderá ser apresentado por uma pessoa com uma lesão definitiva e não apenas por quem padeça de "uma doença incurável e fatal". Ora, admitir-se casos de "lesão definitiva", sem sequer se exigir que essa lesão seja muito grave ou sequer grave, permitirá a aplicação da lei a um sem número de casos em que poderá existir apenas uma simples lesão (física ou mesmo inclusive psicológica), desde que essa lesão seja causadora de um sofrimento extremo ou duradouro e insuportável. E refira-se: na ausência de especificação da lei, esse sofrimento tanto poderá ser físico, como psicológico.
E quanto aos casos de "doença incurável e fatal", não se exige que essa doença seja terminal (i.e., com um prognóstico vital estimado de semanas ou meses) ou sequer se estima um prognóstico vital para a ocorrência da fatalidade, o que permitirá a aplicação da lei a um sem número de casos de doenças que, apesar de serem incuráveis e fatais, não são terminais ou em que não é possível estimar quando ocorrerá o acontecimento fatal inevitável (que poderão ser anos).
Refira-se, aliás, que, inclusive, no projecto de lei do PAN, para além de apenas se exigir que a doença seja "incurável", sem sequer se exigir que essa doença seja terminal ou mesmo fatal ou sequer grave ou muito grave, admitem-se casos de situações clínicas de "incapacidade ou dependência absoluta ou definitiva", sem se exigir que essa incapacidade ou dependência seja causadora de sofrimento, e, relativamente às situações clínicas de "incapacidade ou dependência definitiva", sem sequer se exigir que essa incapacidade ou dependência seja total ou absoluta ou sequer grave ou muito grave.
Para além da amplitude dos casos à partida admitidos, acresce que nenhum dos projectos de lei sequer estabelece um procedimento administrativo que permita um escrutínio rigoroso do cumprimento dos referidos requisitos e uma comprovação clínica dos mesmos, em nenhuma instância, aliás. A fim de se demonstrar que assim é, importa referir alguns aspectos procedimentais, entre tantos outros, previstos nos projectos de lei do PS e do BE:
1º - O médico a quem é apresentado o pedido de "antecipação" de morte (doravante designado por "médico responsável"), é escolhido livremente pela pessoa (doravante designado por "doente"), não tendo de ser o seu médico pessoal ou de família ou sequer especialista na patologia que possa afectar o doente, o que significa que o médico responsável poderá não ter qualquer conhecimento da pessoa e do seu historial clínico;
2º - Não são estabelecidos nenhuns requisitos formais (ex: elementos de identificação, doença ou lesão de que padece, historial clínico, etc.) para o pedido a apresentar pelo doente ao médico por ele escolhido, a não ser que seja um "documento escrito, datado e assinado pelo próprio", e nem sequer se exige que essa assinatura seja feita na presença do médico;
3º - O doente não está obrigado a entregar ao médico responsável, conjuntamente com o seu pedido, quaisquer documentos, muito em particular o seu processo clínico acompanhado dos exames e relatórios anteriormente realizados, sendo que esse processo clínico é fundamental para que se possa vir a concluir pela existência de uma lesão definitiva ou de uma doença incurável e fatal;
4º - Não se prevê que o médico responsável, antes de emitir o seu parecer sobre se o doente cumpre (ou não) todos os requisitos previstos na lei, tenha de ou sequer possa mandar realizar quaisquer exames destinados a confirmar a patologia do doente e a sua situação clínica, pelo que, não tendo em seu poder o processo clínico do doente (e podendo inclusive não ser o seu médico pessoal ou de família ou especialista na patologia que possa afectar o doente), não terá o mesmo quaisquer condições para praticar, com rigor, adequação e exigência, os actos que a lei lhe atribui, i.e, emitir o seu parecer, prestar ao doente toda a informação e esclarecimentos sobre o estado de saúde e a situação clínica que afecta o doente, os tratamentos aplicáveis, viáveis e disponíveis e o respectivo prognóstico, e escolher um médico especialista na patologia que possa afectar o doente;
5º - Não está previsto que o médico especialista (que, tal como o médico responsável, pode nunca ter conhecido o doente, nem conhecer o seu historial clínico), antes de emitir o seu parecer sobre se o doente cumpre (ou não) todos os requisitos previstos na lei, tenha de ou possa realizar consultas com o doente e tenha de ou possa mandar realizar quaisquer exames, destinados a confirmar a patologia do doente e a sua situação clínica, pelo que não terá o mesmo quaisquer condições para emitir, com rigor, adequação e exigência, o parecer que lhe é pedido;
6º - A emissão de um parecer por um médico psiquiatra nem sempre é obrigatória, só o sendo quando o médico responsável e/ou o médico especialista tenham dúvidas sobre a capacidade da pessoa para formular o pedido ou admitam que ela possa ser portadora de uma perturbação psíquica que afecte a sua capacidade de tomar decisões, revelando uma vontade séria, livre e esclarecida, sendo certo que só um médico psiquiatra tem competências para aferir se o doente padece ou não de uma doença mental e se a sua vontade é realmente séria, livre e esclarecida;
7º - A circunstância de estar previsto que os médicos (responsável, especialista e, se for o caso, psiquiatra) só podem falar com os familiares do doente se este autorizar, não só impedirá aqueles, em caso de ser negada essa autorização, de verificar se a vontade manifestada pelo doente é realmente voluntária e livre (de quaisquer pressões ou coacções familiares), bem como, se essa vontade é séria e actual (e não apenas consequência de um sentimento momentâneo, motivado por exemplo por uma situação de abandono ou desinteresse familiar), como se revela injustificável, atenta não só a finalidade última do procedimento legal de "antecipação" da morte, mas também por não existir no mesmo qualquer sigilo profissional médico que tenha de ou deva ser respeitado, dada a natureza do procedimento e do acto de provocação da morte;
8º - Apesar de se dizer que a decisão do doente, em qualquer fase do procedimento, é indelegável, não deixa de se prever que, caso o doente esteja impossibilitado de escrever e assinar, pode, em todas as fases do procedimento, fazer-se substituir ou representar por pessoa por si indicada, o que abre a porta para que a vontade manifestada não seja a vontade do doente mas sim de terceiros sempre que ao longo do procedimento for solicitada a reiteração da vontade do doente de morrer;
9º - Apesar de serem estabelecidos vários deveres que deverão ser respeitados pelos profissionais de saúde que intervenham no procedimento, não existe qualquer tipo de controlo do cumprimento dos mesmos no decurso do procedimento, sendo certo que a IGAS, a quem somente o projecto do PS atribui competência para fiscalizar os procedimentos, apenas é informada da existência dos mesmos após terem sido emitidos todos os pareceres favoráveis e o doente ter consignado por escrito a sua decisão final de morrer, não sendo sequer cometidos à IGAC quaisquer poderes concretos de fiscalização e controlo mas tão somente a possibilidade de estar presente na hora da morte do doente;
10º - A composição da Comissão criada para proceder à verificação e avaliação dos procedimentos e da aplicação da lei - um médico indicado pela Ordem dos Médicos, um enfermeiro indicado pela Ordem dos Enfermeiros, um jurista indicado pelo Conselho Superior da Magistratura, um jurista indicado pelo Conselho Superior do Ministério Público e um especialista em bioética indicado pelo CNECV -, é manifestamente desadequada aos fins para os quais é criada, uma vez que a verificação do cumprimento da lei e dos requisitos que a lei faz depender o deferimento do pedido de morte, pressupõe o domínio de conhecimentos na área da medicina e não em qualquer outra área científica ou de conhecimento;
11º - Não se prevê que a dita Comissão, antes de emitir o seu parecer sobre o cumprimento dos requisitos e das fases anteriores de cada procedimento, tenha de ou sequer possa conversar com o doente e/ou possa mandar realizar quaisquer exames destinados a confirmar a patologia do doente e se a situação clínica cumpre todos os requisitos definidos na lei, sendo certo que, o prazo que é dado à Comissão para emitir o seu parecer (seja 24 horas, 5 ou 8 dias úteis) é manifestamente insuficiente para que possa ser feita uma real verificação, no caso concreto, do cumprimento dos requisitos previstos na lei, e para que possa, com um mínimo de rigor e de exigência, ser emitido o parecer final que levará à morte do doente, o que transforma o parecer da Comissão num acto ou visto puramente administrativo e burocrático;
12º - Os demais poderes de verificação e avaliação da aplicação da lei que são igualmente cometidos à dita Comissão, e que se concretizam na elaboração de relatórios anuais de avaliação, serão exercidos após os procedimentos terem sido concluídos, o mesmo quer dizer, após o dano de morte poder estar definitivamente consumado;
13º - Não está prevista a possibilidade e/ou obrigatoriedade de acompanhamento psicológico do doente em nenhuma das fases do procedimento legal de "antecipação" da morte, nem a possibilidade e/ou obrigatoriedade de ser disponibilizado ao doente o acesso efectivo a cuidados paliativos, em alternativa ao prosseguimento do procedimento legal de "antecipação" da morte ou como condição prévia necessária ao mesmo;
14º - Por último, não é objecto de qualquer regulação nos referidos projectos de lei a necessária articulação da aplicação da mesma com as políticas públicas de saúde e com o SNS, no caso de profissionais de saúde que intervenham no procedimento trabalharem em estabelecimentos de saúde do SNS, nem no caso de o local escolhido pelo doente para a "antecipação" da sua morte ser um desses estabelecimentos, nem como se processará a fiscalização nas clínicas privadas que venham a "oferecer" aos seus clientes o serviço ou comércio da morte a pedido.
Por todas estas razões, entre tantas outras, é forçoso concluir-se que o procedimento legal de "antecipação" da morte previsto nos referidos projectos de lei traduz-se num procedimento administrativo meramente burocrático, mas ao qual, ao mesmo tempo, se pretende conferir uma urgência que se mostra totalmente desadequada à gravidade da decisão final a tomar e a executar no mesmo - a morte de uma pessoa -! Assim, o que verdadeiramente está em causa nestes projectos de lei é uma provocação antecipada da morte de uma pessoa, não sujeita a um escrutínio rigoroso, em que a intervenção de terceiros, sem prejuízo de serem eles a tomar a decisão sobre se deve ou não ser antecipada a morte, acaba por servir apenas para materializar a vontade da pessoa que pede para morrer, pessoa essa que não tem de ser um doente terminal.
Nunca uma lei sobre a eutanásia e o suicido assistido poderá alguma vez ser uma lei boa ou uma boa lei, pois será sempre, na sua essência, uma lei contranatura, inconstitucional, iníqua, ilegítima, ilícita, antiética e imoral. Mas, ainda, assim, existem leis más ou más leis que conseguem ser ainda piores que outras.
Advogada. Mandatária da Iniciativa Popular de Referendo #simavida sobre a (des)Penalização da Morte a Pedido