Respeito sim, amor não
Tirando o povo, os mais de dois milhões que, maioritária e absolutamente o reelegeram vezes sem conta para governante e Presidente; tirando os seus amigos, alguns empresários, políticos e a sua família, ninguém gosta de Cavaco Silva.
Ninguém é: os snobs de Lisboa e Porto, os snobs da Academia e os snobs dos media - plumitivos e cabeças falantes - ou seja, toda a gente. Se há coisa que os snobs fazem é usar a expressão toda a gente: toda gente diz, toda a gente acha, toda a gente sabe, toda a gente gosta. Mas muita gente elegeu Cavaco Silva muitas vezes. Há aqui qualquer coisa que merece uma análise séria. Infelizmente este é um assunto que não interessa a ninguém - ou a toda a gente, lá está.
Esta semana fiquei a saber, numa reportagem da RTP 3, que Cavaco Silva andava de visita às aldeias históricas. Porque andaria o Presidente por ali?, foi pergunta que me fiz e à qual tive resposta pelos microfones da estação e pela boca do próprio. Cavaco Silva fora o responsável, há mais de 20 anos, pela denominação e classificação das nossas queridas aldeias históricas. "Foi no meu governo", disse, acrescentando que foi uma medida que criou muitas empresas; não sabia quantas, mas muitas. Enfim, Cavaco Silva andava por Almeida, acompanhado por equipas de reportagem, à procura de amor.
Diz-se, tenho lido mais do que uma vez, que Cavaco Silva anda preocupado com o seu lugar na História. Diz-se que tudo o que faz ou tem feito nestes últimos anos tem essa motivação: a memória futura. Pois a mim quer-me parecer que, mais do que o lugar na História, que está inevitavelmente assegurado, Cavaco Silva sofre com a falta de amor. Como é que uma pessoa que sempre pôs o interesse nacional acima do seu, que sempre agiu de acordo com as regras, que foi o mais obediente e o melhor dos alunos, que estudou sempre e até altas horas da noite todos os dossiês, que foi o mais dedicado guardião das convenções, que fez o CCB e legislou a existência e a proteção das aldeias históricas, como é que um político assim pode ser mal-amado por, lá está, toda a gente? Como é possível tanta ingratidão? Tanto desamor?
O autor Kevin Roberts, no livro Lovemarks, oferece-nos uma explicação. Segundo o seu modelo, as marcas - comerciais, políticas, culturais, países ou mesmo pessoas públicas - posicionam-se algures entre dois eixos que se cruzam: o eixo do respeito e o eixo do amor. Para melhor entender o modelo tomemos como exemplo dois países: a Alemanha e o Brasil. Intuitivamente percebemos que a Alemanha é um país que suscita respeito, muito respeito, pela força que tem, pela dimensão, pelo poder, pela competência técnica, pelo que produz; mas muito pouco pelo amor, pela História recente, pela língua que poucos falam e pelo poder que exerce. Ao contrário, o Brasil é um país que suscita muito mais afetos, pelos sorrisos, pela sensualidade, pelas praias, pelas manifestações culturais e os carnavais; mas muito menos respeito. E depois há marcas, poucas, que são fortes nos dois eixos. Podemos pensar em países como os Estados Unidos, por exemplo, que é forte no eixo do respeito, e, graças à sua produção cultural e artística, às suas celebridades e media, é forte em afetos.
Cavaco Silva foi uma marca política forte no eixo do respeito. Por isso foi eleito tantas vezes. Mas, porque não é da sua natureza, nunca conseguiu ser forte no eixo dos afetos; onde são valorizadas qualidades como a empatia, a simpatia, a sensualidade, as emoções. Ao contrário, Mário Soares, por exemplo, foi forte nos dois eixos; no do respeito, pela história da luta pela democracia - primeiro contra o fascismo depois contra o PREC -, e no dos afetos, pela empatia, a simpatia e por ser um exemplo de bon vivant.
Suscitar, simultaneamente, respeito e afetos é raro e difícil. Mas é o que garante, mais do que um lugar na História e na memória, um lugar no coração dos cidadãos; sejam eles consumidores, espectadores ou eleitores.
É claro que Cavaco Silva terá o seu lugar na História desta democracia. É inevitável, depois de tanta reeleição. Mas dificilmente terá o afeto dos cidadãos; respeito sim, amor não. Mesmo que, ultimamente, pareça pedi-lo, ao lembrar a obra, o que disse, o que fez, o que avisou; o que chega a dar pena. Se calhar Cavaco Silva precisa de amor. Mas não é a obra que faz o amor. São os gestos. Os sorrisos. A empatia. No caso das pessoas, não há plano de marketing que valha. Essa é uma tarefa da natureza.