"Resolver a questão das Malvinas é uma obrigação internacional"

O argentino Marcelo Kohen é professor de Direito Internacional no Graduate Institute de Genebra
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Em 2013, os habitantes das Falkland (Malvinas) disseram num referendo que queriam manter a relação com o Reino Unido. Porque é que a Argentina não aceita este resultado e continua a reclamar a soberania?

O referendo foi organizado pelo governo britânico para que os cidadãos britânicos decidam que o território que habitam continua a ser britânico. Não foi um referendo organizado ou supervisionado pelas Nações Unidas, como por exemplo em Timor Leste. Ali havia um povo com o direito à autodeterminação, houve um referendo que contou com a participação e a supervisão da ONU. Aqui é o contrário. O único objetivo do referendo era ser um instrumento de propaganda para manter a situação colonial.

Os habitantes das Malvinas não têm direito à autodeterminação?

Não, porque existe o que a ONU considera uma situação colonial particular. Nas Malvinas não há um povo submetido ao domínio colonial, como noutras parte do mundo, onde houve o processo de descolonização. No caso das Malvinas a vítima da ação colonial foi a Argentina. Nunca houve uma população originária. A Argentina governava as ilhas como sucessora de Espanha, após a independência [declarada em 1810], e o Reino Unido expulsou [em 1833] a Argentina e instalou a sua própria população, controlou a política migratória e recusa resolver o conflito. Atualmente há 2840 habitantes, mas 40% da população chegou às ilhas há menos de 10 anos. E essa percentagem é sempre igual a cada novo censo. Pretender que isso é um povo com direito à autodeterminação parece-me que é abusar do que é um princípio jurídico fundamental. É um paradoxo. Aquela que foi a principal potência colonial, que se negou a reconhecer o direito à autodeterminação como princípio jurídico, hoje pretende manipular a autodeterminação para perpetuar esta situação colonial.

[citacao:No caso das Malvinas a vítima da ação colonial foi a Argentina]

Esse é o argumento da Argentina usa para pedir o diálogo?

O que a Argentina pede é que haja negociações. A Assembleia Geral da ONU decidiu que a forma de resolver a situação é solucionando a questão da soberania. O que a ONU disse e a Argentina aceita é ter em conta os interesses dos habitantes atuais.

Mas não aceitaram o referendo...

Aceitar os interesses dos habitantes não significa deixar que os súbditos britânicos sejam árbitros num conflito entre o Reino Unido e a Argentina. A jurisprudência do Tribunal Internacional de Justiça diz que, nos conflitos territoriais, é preciso respeitar os direitos humanos das populações, os direitos adquiridos, as propriedades, mas o tribunal não diz que os habitantes podem decidir. A ideia sedutora é dizer que são os habitantes que devem decidir, mas é preciso conhecer a realidade da situação. Há muitos outros exemplos em que os habitantes não puderam dizer nada. Veja-se Hong Kong. O Reino Unido negociou a entrega do território à China sem perguntar aos cinco milhões de habitantes se o queriam.

Se a Argentina não tivesse invadido em 1982 a situação seria diferente?

O uso da força por parte da ditadura militar argentina foi ilícita, contrária ao direito internacional. É preciso resolver os conflitos por meios pacíficos. O uso da força foi ilícito, mas isso não tem qualquer repercussão na questão de fundo, de soberania. Há muita gente que diz, perderam a guerra, logo, acabou. Mas não estamos no século XIX. A guerra não resolve os conflitos. A guerra não modificou a situação, de tal forma que poucos meses depois de acabar, a ONU voltou a dizer que era preciso negociar. Como tem vindo a fazer há 50 anos. Na prática, claro que dificultou a situação, mas isso não pode ser usado como uma desculpa. Porque se o governo britânico esteve disponível para dialogar antes, com o regime militar, porque não negoceia agora com um governo democrático? Além disso, existe um compromisso unânime entre todos os partidos argentinos e não existe a menor ameaça de uma nova ação militar da parte da Argentina. Apesar disso, o governo britânico mantém uma base militar, onde se estima que haja 1500 soldados britânicos.

[citacao:Não existe a menor ameaça de uma nova ação militar da parte da Argentina]

Esperam alguma mudança do Reino Unido?

A Argentina conta com o apoio de quase todo o mundo que pede que haja uma resolução da questão da soberania. É uma obrigação internacional, não um capricho do governo argentino. Enquanto o Reino Unido não aceitar negociar ou propuser outra forma de resolver a situação, está a violar a obrigação de a resolver. Esperamos que, mais cedo que tarde, um governo britânico cumpra com esta obrigação. Porque o argumento dos britânicos é: negociamos só quando os habitantes das ilhas nos pedirem para negociar. Mas isso é uma desculpa para não resolver o problema. É a posição típica de força. Quem está no território pode usar todos os argumentos para evitar resolver o problema porque controla a situação. O que a Argentina faz não é uma política de força, mas apoiada no direito de que existe a obrigação de resolver o conflito e é necessário sentarmo-nos para conversar.

PERFIL

Marcelo Kohen nasceu em 1957 em Rosário, na Argentina, e vive na Suíça. É professor de Direito Internacional no Instituto de Altos Estudos Internacionais e Desenvolvimento, em Genebra. Secretário-geral do Instituto de Direito Internacional. Em 1997 recebeu o Prémio Paul Guggenheim pelo trabalho "Possessão contestada e soberania territorial". Tem quatro filhas e dois netos

Consultor de vários governos em questões de Direito Internacional, particularmente em matéria de disputas internacionais e questões territoriais e marítimas, defendeu vários casos diante do Tribunal Internacional de Justiça. Ontem, foi o orador na conferência "O Direito dos Povos à Autodeterminação: a Questão das Ilhas Malvinas", no ISCTE, em Lisboa.

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