Resgatar o compositor, conhecer o homem

O compositor Viktor Ullmann (1898-1944) foi objeto de um recital evocativo no Instituto Alemão (Goethe-Institut), organizado pela embaixada da Áustria em Lisboa
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O recital contou com a presença do pianista Dan Franklin Smith, violinista Martin Walch, Greogorij von Leïtis (como narrador) e Michael Lahr (como orador).

Judeu austro-húngaro de expressão alemã, depois cidadão checo, Viktor Ullmann foi um dos muitos artistas internados na "cidade concentracionária" de Theresienstadt, de onde seria deportado para Auschwitz, em outubro de 1944, e gaseado pouco após a chegada.

Estas e outras circunstâncias da vida do autor da ópera "O Imperador da Atlântida" (como por exemplo o seu entusiasmo pelo teosofismo de Rudolf Steiner) foram explicadas por Michael Lahr, numa comunicação que antecedeu a música.

Esta foi ilustrada por três obras suas, duas das quais compostas em Theresienstadt: a "Sonata para piano n.º 6" e a "Balada da Vida e da Morte do Alferes Cristóvão Rilke", para narrador e piano, talvez a última obra que completou antes de sair para Auschwitz. A outra obra era alguns anos anterior: a "Sonata para violino e piano", de 1937, que nunca terá sido ouvida na época e cuja parte de piano se perdeu durante a Guerra. Martin Walch, o intérprete da parte de violino (que rearranjou num todo musicalmente coerente), assegurou-nos que se tratou, em Lisboa, de uma estreia mundial. À apresentação subjazia ainda um "conceito", no qual se acrescentou um narrador que lia escritos do espólio e correspondência de Ullmann em cumplicidade com o violino, constituindo-se, assim, como um "Ersatz" simbólico (artística, como humanamente, válido) do ausente piano.

Em todo o caso, teria sido ideal uma prévia execução da parte de violino a solo, para uma aferição cabal da "matéria" musical em causa, algo condicionada pelas densidades somadas do momento, da música e dos textos narrados. Ainda assim, percebemos um primeiro andamento muito cioso de estrutura, de expressão algo austera; um segundo andamento, coração pulsante da obra, com reminiscências "bergianas" ("Concerto de câmara", "Concerto para violino") e um "Finale" extrovertido e virtuosístico, de algum influxo neoclássico.

A "Sonata para piano n.º 6" revelou-se obra de grande valia e interesse musicais e integrará, mais cedo ou mais tarde, o repertório. O primeiro andamento tem um pórtico em jeito de "ouverture", ao qual se segue uma forma-sonata, cuja coda é uma secção autónoma, quase um corpo estranho. O andamento lento, na forma-variação, é o mais pungente dos quatro, e dos dois universos complementares que dele se desvelam poder-se-ia ler um retrato da mulher e dos filhos do compositor (dois foram evacuados a tempo para Inglaterra, o mais jovem faleceu em Theresienstadt, o mais velho em Auschwitz). O "Scherzo" que segue cria um contraste muito cavado: percussivo, acerado, sardónico. O "Finale" estabelece um princípio em arco, ou cíclico, com o primeiro andamento, cujo motivo principal é re-tratado em expansão.

Por fim, a obra baseada em Rilke: os 12 excertos que Ullmann com muito critério escolheu fornecem um retrato de todas as grandezas e misérias da guerra e dos homens em guerra, como um microcosmos da vida, da condição humana. O piano assume aqui um papel discursivo ligado à palavra dita, às imagens descritas, mas a linguagem sonora considera o tempo de elaboração da obra literária, pelo que é um Ullmann diferente aquele que aqui se ouve, bastante atento às linguagens que coexistiram na "Belle Époque", no espaço germânico, como no francês e até no russo (Scriabin), o que testemunha a versatilidade e o conhecimento panorâmico que dos estilos modernos tinha Ullmann.

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