Reportagem: Ericeira

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Manhã de chuva. Do alto da falésia que dá para a praia só se destaca um ponto no cinzento do mar. São dez horas em Ribeira d'Ilhas e na água há um surfista sem companhia. "Estás na Meca do surf", dirá Ulisses pouco depois, num tom que não admite dúvida. Segue atrás de um grupo de gente que carrega pranchas. Vão até à Pedra Preta, rocha no extremo norte do areal. Ele é o professor. Eles, os candidatos a deslizar na água à boleia de uma onda.

O mar "está pequenino e não tem força, excelente para aprender", anuncia depois de espreitar sobre a vedação que separa o surfcamp da praia. "Let's go", "andiamo", "bora aí". Ulisses Reis grita em voz de comando na língua em que se fala o surf e seguindo uma gramática onde as regras são impostas pela necessidade de comunicar o sentido de equilíbrio numa prancha. Há três anos que é um dos cinco instrutores naquela que se apresenta como a melhor praia da Europa para a prática da modalidade. Como os outros, passou por um curso de três semanas na Federação Portuguesa de Surf onde têm de prestar provas nas ondas.

Ulisses aprendeu a surfar aos 14 anos, em Carcavelos; viveu 15 na Austrália e aos 40 instalou-se na Ericeira. Tem 43 e ontem começou o dia com sete alunos e um monte de sapatos. "Olha a sardinha. 'Tá fresca", anuncia enquanto despeja na relva caixotes cheios de sapatilhas de borracha. Dúzias, onde é preciso achar o que serve em cada pé num processo que se revela mais demorado do que a aprendizagem da teoria até entrar no mar.

Stefano está entre os que procuram o par. Já acertou no pé esquerdo. Italiano, viveu cinco meses no Guincho e fala um português sem artigos nem tempo de verbos. Desde que se mudou para a Holanda para trablahar como gráfico, faz menos ondas do que gostaria. "Estou aprender de novo", explica enquanto testa um sapato. A praia é de lage e ninguém entra descalço. Além disso há os ouriços do mar. A escola é patrocinada por uma marca de artigos de desporto e com as aulas fornece o equipamento patrocinado por uma marca. "Onde é que está a iltaliana?" Ulisses quer começar a teoria. Empurra uma das raparigas depois de lhe pedir para se desconrair e fixar num ponto. "É um truque para ver qual é o pé da frente", justifica. O pé que deve comandar o corpo quando está em cima da prancha. "Ainda vai chegar o puto Bernardo. Está atrasado, mas vamos fazendo o aquecimento." Bernardo tem oito anos. É amigo de Gonçalo, de nove, que já não se considera um aprendiz. "Está é a minha segunda aula." Sabe deslizar, orgulha-se mas não perde pitada das explicações de Ulisses sobre como avançar no mar e levantar-se no longboard. Explica e encena uma coreografia que pede a todos para imitar. Corrige posições, sublinha manias. "More, more. No good", insiste com Cristina, a italiana. "Olhar sempre em frente e nunca para baixo"; "nariz levantado." E segue a corrida que é hora de ir para a água depois de distribuídas as pranchas de acordo com a altura, peso e agilidade de cada aluno.

O Bernardo chegou. "Surfa bué", nota um dos instrutores que acompanham Ulisses. Não é o aluno mais novo. "Temos dois rapazes com quatro anos. É a idade mínima para começar. Há também duas meninas com seis", adianta o professor. "Vão comigo na prancha para se ambientarem. É um tipo de aula diferente."

"Hoje está side-off", diz. Refere-se ao vento que sopra de norte, "de lado". Bom seria que estivesse offshore, de terra, para que as ondas viessem certinhas, em tubo. A conversa deriva para uma descoberta recente que serve a Ulisses para ilustrar a tese de estar na melhor praia da Europa. "Apareceu há pouco tempo uma onda nova, a 'cave', entre Ribeira d'Ilhas e os Coxos, mas é só para taradinhos". São dois metros de onda para cerca de meio metro de profundidade. E fala de outras ondas registadas na gíria do surf e um exclusivo, mantendo-se na faixa de mar que vai da Ericeira aos Coxos. Há a "predra preta", a "pontinha" e, mais a norte, a "pontíssima"; a sul, o "rif" e a seguir a "pedra branca" só possível com a maré baixa.

Ulisses fala e vai pela praia. Cumprimenta uma rapariga que não está vestida para o mar. "É a minha aluna mais antiga. Ainda anda a anhar", outra forma nomear o medo que as ondas metem e que ainda não assustam Bernardo.

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