REPORTAGEM: Trajes de papel para o Porto apreciar e um banho de mar desfazer
Um cortejo de trajes em papel, legado de rituais pagãos, recria domingo, no âmbito das festas de São Bartolomeu, na Foz do Douro, Porto, os últimos cem anos em Portugal, reunindo fado, Fátima e futebol.
O tema foi escolhido pela União das Freguesias de Aldoar, Foz do Douro e Nevogilde e os preparativos para se voltarem a exibir nas ruas fatos e adereços em papel - que depois se hão de desfazer à medida que quem os enverga tomar o banho santo no mar - decorrem desde março, no Centro Social Trajetórias, através de um grupo de voluntários.
Falando à agência Lusa, o historiador do Porto Hélder Pacheco relata que a tradição dos cortejos de papel tem raízes milenares, sendo legado do "ritual pagão de culto da água" que mais tarde "foi cristianizado, fazendo-o coincidir com o dia de São Bartolomeu".
"Há notícias muito precisas desta romaria no século XIX, no dia 24 de agosto, com os lavradores dos arredores do Porto a irem em massa à festa, que culminava com toda a gente a tomar banho ao mar", explica.
Segundo a crença popular, citada pelo historiador local, "o diabo anda à solta no dia de São Bartolomeu e, para o excomungar, havia de se cumprir o ritual do banho, com sete mergulhos".
Já em 1942, "um bairrista da Foz, Joaquim Picarote, auxiliado por um banheiro, decidiu criar uma nova tradição, um desfile em trajes de papel", relata Hélder Pacheco.
O historiador diz nunca ter encontrado algo semelhante na Europa e sublinha não estar clara a razão da escolha do papel como matéria-prima para os trajes.
A costureira Branca Costa, que soma 63 dos seus 83 anos de idade como a trabalhar no evento, lembra-se que, noutros tempos, a confeção dos trajes "não era tão boa". Mas, contrapõe, "havia muito mais gente" a colaborar.
"Chegámos a ser 50", afiança, orgulhosa.
Quanto à evolução da qualidade do trabalho, afirma que "a perfeição hoje é tanta" que "até dá pena" ver os trajes de papel desfazerem-se quando quem os enverga vai ao banho.
"Antigamente eram as velhotas que desfilavam e quase não iam à praia. Só os homens iam ao banho. E como não havia biquínis, quem ia, trazia uma combinação [peça de roupa interior]", lembra Branca Costa, por entre gargalhadas das cerca de 12 voluntárias que por estes dias dão os últimos retoques nos 150 fatos de papel.
Dolores Gouveia, responsável pela área do 'design', descreve que o projeto dedicado aos últimos cem anos em Portugal começa, na vertente relacionada com Fátima, com as "aparições", remetendo depois para a recente visita do Papa Francisco.
Nas outras vertentes, alude-se à vitória de Portugal no Campeonato Europeu de futebol, em 2016, e cria-se uma réplica em papel do vestido que a fadista Amália Rodrigues usou na sua estreia no Olympia de Paris.
Em declarações à Lusa, o presidente da União das Freguesias de Aldoar, Foz do Douro e Nevogilde, Nuno Ortigão, expressa preocupação pelo futuro do projeto, lembrando a idade avançada dos atuais voluntários.
Daí o lançamento, há um ano, de um ateliê de costura "tentando atrair pessoas mais novas" para colaborar na feitura de trajes.
"Assim, não corremos o risco de um dia não termos pessoas que consigam fazer este tipo de costura. A costura em papel não é igual à normal", observa.
O cortejo sai no domingo, às 10:30, na Cantareira, e termina na Praia do Ourigo, com todos a banhos. Prevê-se o envolvimento de um total de seis centenas de pessoas.