Reportagem Narcóticos Anónimos
Ninguém diria que o proprietário daquele BMW ou que aquela mãe que empurrava o carrinho do bebé - apenas duas pessoas entre as centenas que participavam num encontro que mais parecia uma reunião de bancários ou de professores - há uns anos podiam estar a viver nas ruas do Casal Ventoso ou andar a fugir à polícia por causa dos furtos que faziam para poderem comprar "pó" - que alguns, na poética com que é criada a sempre mutante gíria do meio, designam também por "cavalo". Nada disso interessa, porém, à Associação Portuguesa de Narcóticos Anónimos, que promoveu, este fim-de-semana, a sua XV Convenção.
No complexo da Nave Desportiva de Espinho, repleta de gente, sublinhava-se que o facto de estar "limpo" de drogas e de álcool pode ser celebrado como uma festa. No countdown final levantavam-se, por grupos, desde os que resistem já há vinte anos até aos que não consomem nada há um só dia, sendo todos aplaudidos pelo plenário.
Quando os Narcóticos Anónimos (NA) começaram a funcionar em Portugal, corria o ano de 1985, o primeiro grupo de auto-ajuda reuniu-se na Igreja do Corpo Santo, em Lisboa. Duas décadas volvidas, há 191 a funcionar, com regularidade semanal, em 86 localidades, no Norte e no Sul e nas Ilhas, a que se acrescentam os dos hospitais e prisões e a linha telefónica 800 202 013.
Mas, afinal, o que faz juntar em Espinho estas largas centenas de cidadãos, com estatutos sócio-profissionais que vão do trolha ao advogado (embora o anonimato mantenha um ambiente de igualdade nas reuniões), em torno de uma ideia que surgiu nos Estados Unidos, em 1953, e se foi espalhando pelo Mundo? Talvez aquele comentário que qualquer membro dos Narcóticos Anónimos pode largar ao amigo que continua dependente, mas quer libertar-se "Comigo, resultou. Se quiseres, vem experimentar, até porque é de borla."
As pessoas, admite uma participante que nem precisou de qualquer tratamento para abandonar as drogas, "chegam cépticas, ao verem aquela gente toda com tão bom aspecto e desconfiando que nunca poderão ficar assim tão bonitas".
Depois, ao ouvir os "limpos" descreverem situações por que passaram e com as quais se identificam ("quase parece que o outro está a pensar em voz alta o que também eu sinto"), o recém-chegado vai descobrindo as potencialidades do "valor terapêutico" dessa ajuda. E a mensagem que lhe passam, para ele ir interiorizando, é que a abstinência é "só por hoje" - uma fórmula quotidianamente renovável, até que passem anos sem consumir nada que contribua para uma forma de "suicídio lento".
Ainda por cima, ninguém lhe pergunta qual é a sua religião, se já esteve preso ou quem era o seu dealer. No fundo, como se explica na terceira das Doze Tradições (ver caixa), "o único requisito para se ser membro é um desejo de parar de usar" adictivos - o termo técnico para as substâncias que vão do álcool à heroína, do haxixe ao ecstasy.
Uma das raras certezas científicas assumida pela associação - que não tem pretensões de se substituir às outras estruturas existentes, nomeadamente as terapêuticas - é que a adicção é uma doença, "para a qual não existe cura". O fundamental para os que participam num encontro, em Amarante ou em Ponta Delgada, tenham sido desintoxicados em centros clínicos, abandonado o consumo pela "magia da reunião" dos NA ou ainda estejam a consumir, é a ideia de que é possível interromper o curso dessa doença progressiva e recuperar.
Aliás, o primeiro dos Doze Passos (um catálogo de princípios distinto das Doze Tradições) é admitir que se era impotente perante a adição e que se tinha perdido o domínio sobre a sua própria vida. Ou, nas palavras de uma risonha participante da Convenção de Espinho, naquela momento "as pessoas bateram no fundo do poço emocional, sentem uma enorme solidão, uma falta de respeito por si próprias e até uma ausência de valores - manipula-se toda a gente, rouba-se para obter a droga, deixa-se um filho por dá cá aquela palha".
Qualquer novato poderá identificar-se com o que os veteranos designam como as duas vantagens das reuniões, que tanto podem decorrer num salão paroquial como numa sala de qualquer Junta de Freguesia o poder da partilha, em que todos se identificam com as experiências do outro; e as perspectivas para um novo modo de vida, que permita resistir aos comportamentos compulsivos que levam à necessidade da adicção.
"A recuperação em NA não é uma cura milagrosa que acontece num dado período de tempo", adverte a literatura da organização. "É um processo contínuo e pessoal. Os membros tomam a decisão de aderirem e de recuperarem ao seu próprio ritmo."
Cartão identificativo com o lema "um novo olhar", todos os que foram a Espinho sabem que é preciso abstinência completa. "A única forma de não regressar à adicção activa é não tomar a primeira droga. Se és como nós, sabes que uma é demasiado e mil nunca são suficientes." Além disso, "pensar que o álcool é diferente das outras drogas fez com que muitos adictos recaíssem", alertam, mesmo não tendo a perspectiva de que quem volta ao consumo será "expulso" dos NA, como se fosse um clube com regras.
De resto, ali não há quaisquer obrigações. "Não estamos associados a nenhuma organização, não é necessário pagar jóias ou quotas, não há juramentos ou promessas. Não estamos ligados a qualquer grupo político, religioso ou policial, e não estamos sob vigilância. Qualquer pessoa pode juntar-se a nós independentemente da idade, raça, identidade sexual, crença, religião ou falta desta", garantem os textos.
No universo de NA em Espinho, onde se juntam o empregado de armazém e o quadro da multinacional, o braço tatuado com serpentes e a marca que justifica o preço da blusa, solta-se um brado feminino dirigido a outro anónimo, cujo nome é conhecido naquele círculo de cumplicidades, e que estacionou a sua modesta carrinha comercial "Dá-me cá um abraço gigante."