Dia após dia, o ritual repete-se: Patrícia começa a trabalhar às 10.30 e sai às 15.00, regressa a casa para preparar o jantar, vai novamente trabalhar às 17.00 e volta para dormir já perto das três da manhã. Aos 33 anos, tem dois empregos, um ordenado líquido total de 900 euros mensais, para sustentar também o filho de 16 anos e a mãe, de 69. Foi em Lisboa que conseguiu emprego, mas onde não encontrou teto por um valor que não a obrigasse a abdicar da alimentação da própria família. Perante o desespero, embrulhada no caos da especulação do mercado imobiliário que assolou a cidade, há cerca de dez meses decidiram ocupar uma casa abandonada em Chelas. "Era isto ou ficar na rua", começa Patrícia por contar. Há duas semanas, recebeu uma notificação de despejo, mas nada aconteceu até agora. A única certeza é que, para já, não há plano B na vida desta família..Mas não é exemplo único. Como ela, há tantos outros a ocupar casas vazias em Lisboa por necessidade. "Centenas", garante Rita Silva, dirigente da associação Habita. Embora os números oficiais não sejam conhecidos. Questionado pelo DN, o gabinete da vereadora da Habitação Paula Marques não revela quantas casas em Lisboa estão atualmente a ser ocupadas de forma abusiva. Garantem apenas que "a taxa é muito baixa relativamente às mais de 25 mil casas que existem" na cidade..O que se sabe é que são "sobretudo mulheres, com filhos, sem apoio dos atuais ou ex-companheiros, com baixos salários", garante Rita Silva. São pessoas que, de repente, se veem em situações "muito aflitivas" e ocupam casas abandonadas. Um pouco por todos os bairros lisboetas, da Ajuda a Chelas, "a ocupação decorre de um desespero de quem não consegue encontrar mais nada", explica..Todos os dias podem ser o último.A fama do Bairro do Condado, em Chelas, não é diferente da maioria dos restantes bairros sociais de Lisboa. São o espelho da pobreza e da degradação da cidade, casa de muitas famílias incapazes de pagar mais senão as rendas municipais. Mas também de quem procurou rendas deste valor, não foi bem-sucedido e ali escolheu habitar, mesmo que ilegalmente..Entrámos na casa de Patrícia, deitada sobre a grande mancha habitacional de Chelas. A vista para o Tejo é uma ilusão: lá dentro, conta-se a história de uma família que, por desespero, acabou a ocupar o vazio de alguém. Na mesa da sala, o filho Afonso dá força à agulha e ao dedal para coser um casaco. "Educamos para que ele saiba fazer tudo com as próprias mãos, se um dia precisar." Quem o diz é a avó Maria do Espírito Santo, que caminha com dificuldade pelo corredor entre o quarto e a cozinha, carregando um saco de roupa suja na mão. Um acidente vascular cerebral (AVC) em 2007 limitou-lhe alguns movimentos. Ainda vive aqui uma quarta pessoa, o companheiro de Patrícia, Fábio, de 40 anos, até há bem pouco tempo um sem-abrigo. O primeiro a abrir a porta da casa que agora ocupam..A história de Patrícia começou a alguns quilómetros de onde agora vive. Nasceu em Carcavelos e lá permaneceu até aos 18 anos. Aos 17, quando ainda estava a estudar, foi mãe de Afonso, cuja presença teve de abdicar por não ter condições financeiras para o sustentar. "Tive de o levar para uma casa de acolhimento, em Abrantes, até que eu conseguisse arranjar meios de sobrevivência para mim e para ele.".Sempre que o seu nome é mencionado, Afonso levanta a cabeça e prende o olhar na mãe, sem nunca tirar os dedos da linha e da agulha. Patrícia continua a folhear o passado. Quando finalizou o 11.º ano, tinha o filho já 1 ano e dois meses, a diretora da casa de acolhimento ofereceu-lhe condições para terminar o ensino secundário em Abrantes, perto de Afonso. Não pensou duas vezes. Assim que terminado o 12.º, decidiu procurar emprego e acabou na área da restauração..Entretanto, conseguiu entrar no ensino superior, mas cedo percebeu que estava a investir numa área que não aquela em que estava feita para trabalhar - comunicação social. O que sonhava mesmo era ser advogada. Desde aquele dia em que, com 11 anos, assistiu ao filme Time to Kill, em que um advogado luta pela defesa de um pai que vingou o rapto da filha. No segundo ano do curso, desistiu e focou-se novamente na área da restauração. "Trabalhei em vários restaurantes em Abrantes, onde até comecei a fazer alguns trabalhos como cozinheira. Estive durante cinco anos como chefe de cozinha de uma quinta de eventos. Depois, percebi que o ramo estava a exigir a formação, por lei, que eu não tinha. Então, tirei um curso através do IEFP. Fiquei a trabalhar durante a noite e a estudar durante o dia, por seis meses", conta. No entanto, algum tempo depois, viu-se desempregada..Em Abrantes, as oportunidades de emprego estavam cada vez mais escassas. Sem o apoio financeiro da diretora da casa de acolhimento, que continuou a acompanhar Afonso, garante que "não teria sequer dinheiro para comprar comida". Por isso, decidiu enviar currículos também para Lisboa. A primeira resposta positiva caiu pouco depois: Patrícia seria cozinheira na capital. Mas o mais difícil estava por fazer..A mudança de cidade implicava a procura por uma casa, um processo que Patrícia rapidamente percebeu estar perto do impossível. O ordenado que iria ganhar não suportaria as rendas que os senhorios da cidade estavam a pedir. Ao fim de algumas batalhas interiores, acabariam por tomar aquela que consideraram ser a única decisão possível: ocupar um edifício camarário com casas desocupadas. "Ponderámos bastante se queríamos entrar nisto. Estamos a cometer um crime, temos consciência disso. Vivemos numa casa que não é nossa. Mas ou era isto ou ficar todos na rua. Acima do crime está a luta pela nossa dignidade, porque para pagar uma renda em Lisboa tenho de abdicar de comer", lamenta Patrícia. Está disposta a pagar uma renda, garante, "mas uma digna", que lhe "permita ter dinheiro para comer"..A receção no Bairro do Condado foi pacífica. Ninguém questionou, ninguém parecia duvidar das intenções da nova família que ali tinha acabado de chegar. Até ao dia em que a Polícia Municipal bateu à porta, que por lei tem de notificar uma desocupação com três dias de antecedência. Chegaram com as más notícias que a família temia, garantindo que a sua presença foi motivada por uma queixa de vizinhos. Foi há três meses. Mais recentemente, há duas semanas, Patrícia foi visitada por duas assistentes sociais que lhe transmitiram uma ação de despejo em curso contra a família. "Disseram que estava para breve." Mas nada aconteceu até agora. E o alerta também quase nada mudou na vida de Patrícia, que desde o primeiro dia em que ali chegou adormece com o medo de ser o último debaixo de um teto..Há poucas semanas, escolheu deixar o seu caso público, perante a Assembleia Municipal. Disse-o em voz alta, que estava a ocupar uma casa ilegalmente, mas por não ter soluções. "O que me disseram é que estaria a ocupar um lugar que não era meu. É verdade. Mas era isto ou ficar na rua", volta a frisar. Já Rita Silva, da Habita, não concorda que esta premissa esteja correta. "O que tirou a vez a outras foi o facto de deixarem passar tantos anos sem casas atribuídas e o mercado de arrendamento tresloucado", sublinhou..Garantiram a Patrícia que iriam encaminhar o caso para a vereadora e que depois dariam uma resposta, mas sem adiantarem prazos..Um T2 por 917 euros.Uma história que se conta no plural. Embora a maioria escolha não dar a cara. Assim como Patrícia, acabaram nas mãos da associação Habita. São centenas de famílias que, nos últimos dois anos (desde que começaram a atender famílias), têm procurado ajuda junto destes técnicos.."É preciso perceber que todas estas pessoas concorrem a concursos para habitação municipal. A maior parte delas têm pedidos de habitação há mais de dez anos", diz a dirigente da associação.."Mas uma pessoa que tem salário mínimo é penalizada por uma pessoa que não tem salário nenhum. O regime de pontuação vai privilegiar pessoas que têm doenças graves, muitos filhos, o pior dos piores cenários. E estas pessoas ficam de fora, porque nunca conseguem a pontuação suficiente", remata Rita Silva. Algo que acredita que poderá mudar com a atualização do regulamento dos programas de habitação municipais, aprovado nesta quinta-feira e aberto a discussão pública até setembro. O novo documento prevê uma visão mais disponível para as condições sociais das famílias, além do seu rendimento..Certo é que Lisboa continua uma das cidades da Europa onde a disparidade entre o rendimento disponível e os valores das rendas está a aumentar de ano para ano. A conclusão é de um estudo divulgado neste ano pelo Deutsche Bank. Segundo o relatório, o valor dos arrendamentos aumentou 14% desde 2014. E se no início deste período um T2 custava 645 euros, hoje chega aos 917..E tem a autarquia a obrigação de oferecer uma solução a quem não tem como sustentar estas rendas? "Do ponto de vista da legislação portuguesa, não. Mas do ponto de vista dos direitos humanos devia ter. A habitação é um direito fundamental", explica a dirigente da Habita..O estado atual do mercado imobiliário em Lisboa não deixa ninguém indiferente e, por isso, a autarquia tem respondido com diversos programas de habitação. Entre os quais, o mais recente Programa de Rendas Acessíveis, que se junta também ao regime do arrendamento apoiado. Em declarações ao DN, uma fonte da Câmara Municipal de Lisboa garantiu que, quando ocorre a desocupação de um espaço que uma família estava a ocupar ilegalmente, a autarquia não a deixa sem acompanhamento. "O que fazemos é ajudá-las a candidatarem-se aos programas habitacionais, para que possam ter acesso a habitação como todas as outras pessoas", disse..Se a resposta às candidaturas é positiva, é provável que uma destas casas outrora ocupadas seja sua. "Habitações vazias há mais de dez anos, completamente degradadas", explica a presidente da Habita. Um vazio que Rita Silva atribui à falta de atenção que a câmara concedeu ao tema. "Não foram uma prioridade da câmara. A câmara tem como política, sempre que uma casa está para ser atribuída, garantir que a mesma passe por um processo de obras. E estas obras passam por concursos públicos, atribuição de empreiteiros. Demora tudo muito tempo. Mas, mesmo que demore, não foi uma prioridade", reitera..Mas acrescenta: "Agora, está a pôr o assunto como prioritário, devido à pressão social. Estão a começar a atribuir mais casas, por haver muitas pessoas à procura de rendas acessíveis.".As famílias crescem, mas as casas não.Mas nem todas as histórias se contam como a de Patrícia. As casas são em grande parte ocupadas pelo inevitável desdobramento familiar de agregados que nasceram e cresceram nos bairros sociais.."Vêm de famílias que viveram sempre em bairros sociais, a família cresceu, mas a casa não. O tempo passa, as crianças que tinham 5 anos hoje têm 20, casam-se, têm filhos. E entretanto já não cabem no quarto que partilhavam com a irmã em casa dos pais. Mas como continuam pobres, também não conseguem arrendar uma casa, porque o mercado de habitação está como está", explica Rita Silva. A única solução passa ou pela ocupação de casas ou por viver na mesma onde sempre estiveram, em sobrelotação..O problema agudizou-se quando, "há dez anos, Helena Roseta (na altura vereadora da Câmara Municipal de Lisboa e atual deputada do PS) criou um novo regulamento de atribuição de casas municipais em que acabou com uma figura antiga: os desdobramentos", lembra. Até à altura, quando uma família que vivia numa habitação municipal crescia demasiado a ponto de ser impraticável viverem todos no mesmo espaço, havia possibilidade de desdobrar a família para outras habitações. Tal deixou de ser garantido e Rita Silva acredita que está na origem da vaga de ocupações dos bairros sociais..E da pobreza de alguns há quem esteja a tirar proveito, conta. A associação Habita mostra-se preocupada com um outro fenómeno que está a nascer por consequência das ocupações: o negócio de quem é pago para arrombar uma casa e ainda fica a receber uma renda mensal de quem a ocupou. "A câmara está a instalar chapas grossas e alarmes nas entradas das casas, para garantir que não são ocupadas. Mas as pessoas já encontraram forma de as ocupar na mesma. É uma espécie de negócio que se gerou em alguns locais."