"Sou vaidosa, gosto muito de vir ao cabeleireiro. Faz-me bem." Silvina Castro e Silva tem 95 anos e está sentada numa das cadeiras do cabeleireiro em Alfama. Atenta ao trabalho de Rute, que lhe arranja o cabelo branco, assume uma pose séria quando percebe que está a ser fotografada..Passados alguns minutos, já sem o barulho do secador nem as molas no cabelo, Silvina há de dizer que a ida a este espaço da responsabilidade da junta de freguesia de Alfama lhe "faz bem" à autoestima..E a provar que é vaidosa mostra os brincos verdes com quadrados enquanto se olha ao espelho: "É a primeira vez que tenho uns brincos que não são pequenos.".Silvina é cliente do cabeleireiro social de Alfama, um espaço onde as moradoras da freguesia de Santa Maria Maior com maiores dificuldades financeiras podem ir "tratar de si" de forma gratuita ou pagando entre um e 2,5 euros como explicou ao DN a chefe de Divisão e Intervenção na Comunidade, Mónica Nabais..Este serviço é um dos exemplos do trabalho que as juntas de freguesia de Lisboa fazem a favor das pessoas mais carenciadas da cidade..Uma ação que passa em muitos casos pelo pagamento de rendas de casa, das contas da água, da luz, do gás e até ajuda na tentativa de encontrar um emprego..Todos os anos, a Câmara Municipal de Lisboa atribui dez mil euros a cada autarquia local para poderem intervir no apoio às suas comunidades. É o Fundo de Emergência Social, um programa cujo nome explica bem ao que se destina e que recentemente teve de ser reforçado em oito freguesias: Ajuda, Alcântara, Campolide, Marvila, Misericórdia, Penha de França, Santa Maria Maior e Santo António..Os valores deste reforço de verbas foi variado tendo, de um total de 170 mil euros, Ajuda recebido 60 mil, Santa Maria Maior 35 mil e Marvila 30 mil, são as freguesias que mais dinheiro vão receber. São, também, as que em Lisboa têm mais população idosa e com carências económicas.."São pessoas que vivem com 200 euros"."A Ajuda é uma freguesia da periferia de Lisboa com uma população muito carenciada. O fundo é para ajudar famílias em estado de emergência. Estamos a falar de pessoas que vivem com 200/300 euros por mês. Que não conseguem pagar as contas da água, a luz, a renda. Há quem não consiga pagar os medicamentos. Somos nós que pagamos tudo isso", explicou ao DN Jorge Marques..O presidente da Junta de Freguesia da Ajuda frisa que o dinheiro não é dado aos agregados familiares, pois as contas são pagas diretamente pelos seus serviços.."O núcleo central da freguesia está muito envelhecido, são pessoas com muitas dificuldades em pagar as rendas das casas. Temos muita gente a receber o rendimento mínimo", conta..Além das questões financeiras, a população da freguesia - que tem 15 mil eleitores - também tem dificuldades em arranjar emprego. Por isso foi criado o Ajuda Emprega, um projeto que tem como objetivo tentar encontrar trabalho para os moradores.."Temos muitos idosos isolados".Do outro lado da cidade, a zona histórica de Lisboa enfrenta problemas idênticos.."Temos uma intervenção social muito intensa e o dinheiro que recebemos não chega", conta ao DN Miguel Coelho, que acrescenta ter a Junta de Santa Maria Maior de colocar verbas do seu orçamento neste fundo de apoio, pois as necessidades são muitas..Também aqui o dinheiro é canalizado para o pagamento de rendas, água, luz, medicamentos dos moradores mais desfavorecidos.."Na Baixa e no Chiado temos muitos idosos que vivem das reformas e sozinhos. Já na Mouraria, Alfama e Castelo há problemas de insuficiência económica. É para estes bairros que é canalizado a maior parte do apoio que damos", sublinhou..Segundo o autarca, são apoiados mais de duas centenas de agregados familiares numa freguesia que tem 11 mil pessoas a viver em permanência mas com "uma população muito idosa e com pouca formação académica"..Para minorar estas dificuldades a junta tem diversos serviços de apoio social como, por exemplo, o cabeleireiro já referido, uma loja social e a "mesa dos afetos", um serviço de refeições diárias, sete dias por semana, que ajuda mais de 60 agregados familiares, como adiantou ao DN Mónica Nabais..Técnica que tem a experiência no terreno a que se refere o gabinete do vereador Manuel Grilo, responsável pelos pelouros da Educação e Direitos Sociais quando lembra as dificuldades que as famílias enfrentam.."Hoje, uma mãe solteira com filhos e que trabalhe e receba o salário mínimo, não consegue pagar uma renda na cidade, mas também não tem pontuação suficiente para se encaixar nos critérios de habitação social", destaca o autarca dando o exemplo de um caso que encaixa na perfeição no lote de pessoas elegíveis para ser ajudada numa situação de "emergência habitacional grave e/ou situação de carência económica grave. Este apoio integra despesas como a renda da casa, despesas de saúde mediante prescrição ou declaração médica, encargos com a educação de filhos menores".."Uma pessoa tenta pôr-se bonita".Este apoio social acaba por ser uma tentativa das autarquias de dar maior dignidade às pessoas que mais dificuldades têm..E assim voltamos ao cabeleireiro social de Alfama e ao seu papel na freguesia..Quando o DN visitou este espaço, que existe devido à doação do equipamento por parte de uma cabeleireira que fechou o negócio que tinha na Baixa, estavam a ser atendidas duas clientes: a já referida Silvina Castro e Silva, cuja história fica para mais daqui a pouco, e Anabela do Carmo..Anabela mora no bairro do Castelo, mas nasceu em Alfama. Tem 52 anos e a visita à Rute (cabeleireira) e à Ana (esteticista) é um hábito.."Venho cá desde que foi inaugurado. Não posso ir a outros sítios. Tenho uns amigos que têm um cabeleireiro, mas lá só podia ir de dois em dois meses, aqui não. Eles compreenderam e continuam meus amigos", diz ao DN enquanto trata das mãos e das sobrancelhas.."Vivo sozinha, tenho um part-time em que ganho pouco e tenho de pagar renda da casa", conta explicando a razão de utilizar este serviço..Que é, também, uma forma de aumentar a autoestima. "Uma pessoa tenta pôr-se bonita. Aqui aprendemos a gostar de nós", diz a sorrir..Um sorriso que faz ganhar o dia a Ana e a Rute, as profissionais que dizem gostar do que fazem, nomeadamente do acompanhamento às pessoas mais idosas.."Sinto que elas estão satisfeitas. Desabafam connosco", frisa a cabeleireira Rute. Ao que acrescenta a esteticista Ana: "Não tratamos só da beleza, também damos conforto. Quando vamos a casa das pessoas elas gostam de falar connosco porque estão sozinhas.".A vaidade de Silvina.Regressemos então a Silvina Castro e Silva. Sentada na cadeira conta com a ajuda da filha para se preparar. Diz estar um "pouco esquecida", mas acaba por falar de uma vida que pareceu intensa, de vários capítulos, e que tem desde 2014 um capítulo em Alfama.."Gosto do ambiente, tratam-me bem", vai dizendo enquanto olha para o espelho. Assume ser vaidosa - "gosto muito de me produzir" - e não resiste a chamar a atenção para os brincos verdes que sobressaem das orelhas. "É a primeira vez que tenho uns que não são pequenos", conta a mulher que pouco fala do passado, mencionando apenas que tinha trabalhado na indústria farmacêutica (num laboratório que se chamava Fidelis), emprego que deixou para acompanhar o marido na Livraria Castro e Silva, no Chiado, onde terá tido cinco mil livros identificados..Do marido diz, duas ou três vezes, que já morreu, mas não conta, que era Ezequiel Castro e Silva, que esteve preso em Caxias, Aljube e Peniche, condenado na sequência da acusação de ter ligações ao PCP e de receber e distribuir imprensa clandestina. E que o advogado foi o antigo presidente da República Mário Soares..Disso não falou, deixou para a filha, preferiu elogiar um dos netos: o Daniel, casado com a japonesa Kosué - "acho que é assim", diz -, e que é chef num hotel dos Açores..A seguir colocou o lenço pelas costas e seguiu para as ruas de Alfama, o bairro onde mora há quatro anos e onde se "enraizou".