Regresso ao multilateralismo

Publicado a
Atualizado a

Há vinte anos, assisti pela televisão à tragédia do 11 de Setembro. Durante um bom minuto, estive convencido de que estavam a repetir o "acidente" do embate de um avião numa das torres do World Trade Center (WTC), quando na verdade era um segundo avião a atacar uma segunda torre. O que não poderia imaginar era que aquele foi o tiro de partida para o início de uma nova ordem internacional.

Durante décadas, desde que a II Guerra Mundial acabou, a guerra fria foi um descanso. Era quase perfeito um sistema que se autoequilibrava, um baloiço no qual se sentavam, de um lado, os Estados Unidos (EUA), em representação do Ocidente e, do outro lado, a União Soviética (URSS), em representação do Leste. Dois blocos, duas superpotências, e tudo o resto era paisagem.

Esta maravilha da geoestratégia desfez-se quando a URSS se desmoronou, empurrando o mundo para um sistema de hiperpotência única. A China não era ainda, no início deste século, nem uma potência económica nem uma potência militar global. Ao que sabemos hoje, estaria a trabalhar para isso, mas ao ritmo da paciência oriental. Não se antevia, portanto, como poderia ser quebrado este monopólio materializado pela supremacia monolítica norte-americana. Tal não poderia acontecer, certo?

Errado! Alguém estudou as fragilidades da fortaleza americana e arquitetou uma forma rápida e disruptiva de gerar uma nova superpotência. Essa pessoa chamava-se Osama Bin Laden (OBL) e simplesmente subverteu o racional tradicional da ordem internacional. A potência que criou foi super, por não ser convencional. À arte da guerra, que se senta nos pergaminhos da estratégia, contrapôs a arte da guerrilha, que se alimenta dos princípios da tática. A arma secreta que utilizou nada tinha a ver com os arsenais nucleares. Socorreu-se da mais temerária das grandezas da psicologia humana: o medo, que, quando escala do indivíduo para o grupo e para a sociedade, assume a forma de terror.

OBL bebeu muito do capital de queixa fundacional da Irmandade Muçulmana, que tem quase um século de existência. Punir os descrentes ocidentais era tributário do estabelecimento da lei islâmica - a sharia - como base dos Estados e das sociedades, da libertação do jugo da ocupação estrangeira e da oposição às derivas seculares de nações islâmicas motivadas pela contaminação dos vícios dos infiéis.

A anatomia da operação do 11 de setembro mostra bem como OBL soube maximizar o respetivo impacto, ao ponto de fundar uma nova ordem e de se constituir como a potência adversária. Fez jackpot nos três fatores que contam. No fator humano, assassinou o número inimaginável de 2.996 pessoas, de setenta nacionalidades. No fator simbólico, feriu no seu âmago o modelo capitalista e o modo de vida ocidental, ao atacar justamente o WTC de Nova Iorque. Por fim, no fator mediático, sincronizou a operação de forma a que a derrocada das torres fosse transmitida em direto pelas televisões de todo o mundo.

Os EUA estavam impreparados. A sua reação foi aquela que se conhece e que, na sua fase inicial, se compreende. O balanço destes 20 anos de uma nova ordem, onde se chegou ao excesso de invadir o Iraque com base numa mentira, mostra a desadequação da resposta. A jihad islamista é ainda factualmente uma potência, como o comprova o contexto da recente retirada do Afeganistão.

O ocidente não pode subestimar a importância dessa grande democracia que são os EUA, mas deve perceber também a urgência do regresso ao multilateralismo. Dá muito mais trabalho, mas não foi inventado ainda um sistema melhor.

Deputado e professor catedrático

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt