Regresso ao futuro
Há décadas, levaste-me ao cinema para ver o futuro, só os dois, sobrinho e tio, o teu corpo alto e seco, a tua pele morena dos árabes - um estilo que acumulava romances de verão, entradas "à Texas" na discoteca e uma fama de lixado para a porrada. Toda a gente te conhecia no bairro e eu fazia questão de que soubessem que era teu sobrinho.
No ecrã, o Michael J. Fox pulava no tempo, mas eu achava que havia muito mais destemor na forma como andavas de moto ou conduzias camiões ou vestias um casaco de couro. Havia ainda o teu fio, as pulseiras de couro e os vinis de rock; ou o teu quarto na casa da avó com o gira-discos sempre ligado, e eu seguríssimo de que aqueles que diziam "Isso não é música, é barulho" não entendiam que estavas no futuro, que cruzavas o tempo com a mesma sofreguidão com que fazias as curvas de moto - e eu aproveitando sempre a tua velocidade, a ouvir os teus discos quando não estavas, sabendo que serias uma estrela de cinema ou um vencedor de ralis.
Eras o futuro porque, quando eu fosse grande, apesar de ter garantida uma carreira como futebolista ou piloto de caças, também queria ser como tu. Eras o futuro porque me deixavas guiar o teu carro e tinhas namoradas estrangeiras. Eras o futuro porque sabias um pouco de inglês e me explicaste a frase no final do filme - To be continued -, oferecendo-me a alegria de saber que haveria mais um episódio sobre o rapaz que, tal como tu, não era chicken, como comprovava a história, espalhada pelo bairro, da noite em que, sozinho, aviaste mais do que um oponente. Talvez por isso dissessem que eras parecido com o Rambo - o John Rambo, do First Blood, jovem e acabado de chegar do Vietname, não o comedor de esteroides das sequelas. E é possível que estivessem certos, porque havia em ti, além de algumas parecenças de expressão, a mesma revolta, não por causa de uma guerra no outro lado do planeta mas resultado de algo que não conseguia perceber - e que hoje entendo melhor.
Foi a última vez que fomos ao cinema. Porque depois houve aquela tarde em que entrei na sala da casa da avó e tu seguravas uma prata e um isqueiro. O teu amigo, de mãos gretadas e olhos baços de fumo, estava tão ausente que não deu por mim, e fugi sem dizer nada, correndo para o quarto, chorando assim que entraste. Senti um medo primordial - medo de ti, medo do que estavas a fazer - ainda que tenhas falado comigo devagar, a voz baixa, como se estivesses a pedir-me um favor: "Não tem mal, só não podes é entrar assim, sem bater à porta."
Acho que foi aí que deixou de haver futuro, ainda que eu viesse a receber um Walkman amarelo, da Sony, à prova de água e tu até acabasses por ter uma filha, ou que um dia, tantos anos depois, aparecesses à porta da casa dos meus pais: "O tio está limpo, estive numa clínica, só preciso de fazer a barba porque amanhã tenho uma entrevista de emprego." Sempre foste esperto. Na família, contava-se um dos teus feitos, quando, ainda miúdo, cruzaste um bosque, para chamar o meu pai no emprego, porque a tua irmã (a minha mãe) estava a sentir-se mal. Depois, a tua esperteza reverteu para a habilidade com que falsificavas assinaturas em cheques ou surripiavas dinheiro da carteira da avó. "Estou limpo, só preciso de fazer a barba", e eu deixei-te entrar. Só queria ajudar-te, acreditar em ti sabendo que me mentias. Talvez houvesse mais uma hipótese, mais uma clínica, a tua filha. Dei-te as lâminas, abriste a água quente, fui esperar na cozinha. E, ao anoitecer, descobrimos que nos tinhas roubado.
Um dia ligaram-me: "O tio tem sida." E voltei a sentir o mesmo medo de quando entraste no quarto, "Não tem mal", mas claro que tinha mal, porque me tinhas mentido, "O tio nunca se picou, só fuma", e afinal não havia entrevista de emprego, não estavas limpo, uma agulha suja decretara o fim do futuro.
Um dia ligaram-me: "O tio morreu." E hoje peço desculpa pelo medo que tive, por ter sido outra vez o miúdo no quarto, por não ter ido ao hospital ou ao enterro. Morreste dez anos após a tua irmã (a minha mãe). Eu tinha dezoito e a vida toda por diante, sem que soubesse, porém, que o futuro não teria carros voadores, casacos que secam sozinhos ou pastilhas que se transformam em pizas.
O futuro só existe nos filmes. O que tenho é o passado: o apartamento da avó e, na casa de banho, com a porta aberta, tu diante do espelho, sem camisa, esbofeteando o aftershave nas bochechas, Iron Maiden a tocar na aparelhagem, o brinco na orelha que o avô jurou arrancar, o som da moto perfurando a noite, apagando-se lentamente, regressando apenas de madrugada. Sempre que vejo o Regresso ao Futuro lembro-me de ti, da importância de acompanhar-te numa sessão que acabava à meia-noite, de ter a certeza de que eras o futuro. Mas o futuro, afinal, é agora - e agora tu não estás cá.