Regina Duarte irrita-se ao ouvir crítica de Maitê Proença e entrevista em direto é encerrada

A secretária da cultura estava a revelar que continua no cargo, apesar dos choques com Bolsonaro, quando um vídeo da outra atriz dividiu o ecrã. Na conversa, ela ainda foi a tempo de relativizar as mortes durante a ditadura militar brasileira
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Regina Duarte, secretária de cultura do governo de Jair Bolsonaro, abandonou nesta quinta-feira uma entrevista em direto na televisão depois de ouvir, sem estar à espera, um vídeo com críticas da também atriz Maitê Proença.

"Quem é você que está desenterrando uma fala da Maitê, quem é você? Eu tive que dar um chilique aqui, vocês estão desenterrando mortos, trazem um cemitério nas costas, sejam leves", afirmou Regina, dirigindo-se à pivô Daniela Lima, nos estúdios da CNN Brasil em São Paulo.

Lima argumentou que o vídeo tinha sido enviado por Maitê à emissora horas antes.

Ao repórter que a entrevistava no gabinete dela em Brasília, a secretária manteve o tom de protesto: "Daniel [Adjuto], isso não foi combinado. O combinado foi uma entrevista com você!"

Mas a CNN deu por encerrada a conversa.

Maitê criticava a falta de ação do governo de Bolsonaro e da secretária em particular por não emitir nenhuma nota pela morte recente de ícones da cultura brasileira, como os músicos Moraes Moreira e Aldir Blanc, o ator Flavio Migliaccio e os escritores Garcia-Roza ou Rubem Fonseca, por exemplo. Mas não só.

"É inexplicável o silêncio de uma política pública para a cultura. Nós estamos sobrevivendo de vaquinhas", afirmava.

Horas mais tarde, abordada pela revista Veja, Maitê reagiu a ter sido chamado de "morta" por Regina: "Como a Regina foi ontem conversar com o presidente, a CNN me ligou e eu topei falar. Achei que estava na hora de fazer alguma coisa como classe. Eu acho que ela não quis ouvir. Ela presumiu que era uma coisa do passado, não era. Eu estou absolutamente viva. A cultura está perplexa com esse silêncio abissal em relação à política pelo setor, nós estamos vivendo de vaquinhas. Fomos os primeiros a parar e seremos os últimos a voltar, pois nosso trabalho pressupõe uma aglomeração".

E prosseguiu: "Nossos grandes estão morrendo, como Rubem Fonseca e Flávio Migliaccio, e ela e o presidente não dizem uma palavra. Eu fui a primeira pessoa a defender a Regina por ter o direito de pensar diferente. Mas agora estou clamando para ela mostrar os feitos e para conversar com a sua classe. Eu pedi para ela, mas ela não quis escutar. É isso que nós temos para hoje. Eu gosto dela. Eu penso diferente dela, mas eu respeito o direito de enxergar o mundo de forma diferente. Eu acredito que a Regina é bom caráter."

Antes da interrupção abrupta, Regina Duarte foi questionada sobre a sua posição em relação à ditadura militar, período de que Bolsonaro é assumido admirador. "Ficar cobrando coisas que aconteceram nos anos 1960, 1970, 1980... Gente, é para frente que se olha", disse a ex-atriz.

Sobre a quantidade de mortes resultantes desse regime argumentou que "pessoas sempre morrem".

"Se você falar vida, do outro lado tem morte. Sempre houve tortura. Stalin, quantas mortes? Hitler, quantas mortes? Não quero arrastar um cemitério de mortes nas minhas costas. Não quero isso para ninguém", disse a secretária, minimizando as vítimas do regime.

"Para quê olhar para trás", insistiu a secretária, criticando o que chamou de "morbidez" que a Covid-19 "tem trazido para o Brasil".

Ontem o Brasil foi responsável por quase 10% das mortes por covid-19 registadas em todo o mundo: morreram 610 pessoas e o número total de óbitos já ultrapassa os 9000.

A pequena entrevista decorreu pouco depois de numa reunião com Bolsonaro ficar acertada a continuidade da atriz na secretaria da cultura apesar dos indicadores em sentido contrário.

Entre esses indicadores, o mais importante fora a renomeação para a Funarte, uma fundação de apoio às artes, do maestro Dante Mantovani, que havia sido exonerado no contexto da entrada de Regina Duarte no governo.

Mantovani ficou conhecido por associar a música rock ao satanismo e ao aborto. "O rock ativa as drogas, que ativam o sexo livre, que ativa a indústria do aborto, que ativa o satanismo", afirmou o seguidor de Olavo de Carvalho, o filósofo brasileiro radicado nos Estados Unidos que é guru também da família presidencial e do seu núcleo mais próximo.

Regina Duarte não tinha sido informada da readmissão do maestro.

Em áudio partilhado pela revista Crusoé, a propósito, Regina Duarte e a sua assessora falaram desse tema e da indicação de um outro nome para a secretaria de cultura supostamente indicado por Edir Macedo, o bispo que controla a IURD. Na conversa, a ex-atriz desabafa: "Que loucura isso, que loucura, eu acho que ele está me dispensando".

No mesmo dia da renomeação, porém, Mantovani voltou a ser demitido, num sinal de reaproximação, pelo menos por enquanto, entre o presidente e a atriz.

Bolsonaro já verbalizou o descontentamento pela ausência física de Regina Duarte - está de quarentena em São Paulo por pertencer ao grupo de risco do coronavírus, tem 72 anos, e não no gabinete em Brasília.

"Infelizmente a Regina está trabalhando pela internet (...) Eu gosto de conversar pessoalmente com as pessoas. A gente espera que restabeleça a normalidade rapidamente no Brasil para poder funcionar", disse o presidente.

Já no dia 23 de abril, Regina vira a nomeação de Aquiles Brayner para o cargo de diretor do Departamento de Livro, Literatura e Bibliotecas ser cancelada após influencers bolsonaristas acusarem o doutorado em literatura e graduado em psicologia e biblioteconomia, de ser "um traidor" e "um esquerdista infiltrado".

Cinco dias após a posse da ex-atriz, o Palácio do Planalto também cancelara a nomeação de Maria do Carmo Brant de Carvalho da Secretaria de Diversidade Cultural, por ser filiada ao PSDB - o partido de Fernando Henrique Cardoso, de José Serra, de Aécio Neves, de Geraldo Alckmin. Na internet, os mesmos bloggers chamaram-na de "petista", ou seja, de membro do Partido dos Trabalhadores.

No discurso de posse, Regina Duarte lembrou o presidente de que ele lhe dera "carta branca". Mais ou menos o mesmo que Bolsonaro dissera a Sergio Moro, o ministro da justiça e da segurança que se demitiu acusando o Planalto de interferência em investigações e de pressões para mudar o diretor da polícia federal por alguém próximo do clã Bolsonaro.

Antes de Moro, o mais popular dos ministros do governo, caiu o segundo mais popular deles, o titular da saúde Luiz Henrique Mandetta, que coordenava com forte aprovação popular o combate ao coronavírus. No caso, a saída deveu-se à decisão de Mandetta de seguir as recomendações de isolamento social recomendadas pela Organização Mundial de Saúde.

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