Regina Duarte aceita ser secretária da Cultura de Bolsonaro

A atriz de 72 anos, no entanto, diz que, para já, só aceitou "noivar" com o governo e que está em "período de testes" a começar a partir desta terça-feira. Substitui Roberto Alvim, acusado de parafrasear o nazi Joseph Goebbels
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Após reunião com o presidente da República Jair Bolsonaro, a atriz Regina Duarte aceitou substituir o dramaturgo Roberto Alvim, demitido depois de parafrasear o ministro da propaganda nazi, Joseph Goebbels, durante um discurso nas redes sociais, na Secretaria de Estado da Cultura do governo do Brasil. Ela, no entanto, diz que começará nesta terça-feira "um período de testes", uma espécie de "noivado", e que visitará na quarta-feira a secretaria ainda nesse contexto, altura em que, ao que tudo indica, dará o sim definitivo.

O presidente da República afirmou que "o noivado com Regina Duarte trará frutos ao país".

Outra parte interessada - a TV Globo, atual entidade patronal da atriz - já disse, citada pela revista Veja, que "a atriz Regina Duarte tem contrato vigente com a Globo e sabe que, se optar por assumir cargo público, deve pedir a suspensão de seu vínculo com a emissora, como impõe a nossa política interna do conhecimento de todos os colaboradores".

Outro empregado da Globo, o apresentador Luciano Huck, é apontado como eventual candidato à presidência em 2022.

Ao entrar no governo para o cargo cujo nome oficial é Secretaria Especial da Cultura, Regina Duarte ficará subordinada ao Ministério do Turismo, liderado por Marcelo Álvaro Antonio, já constituído arguido por corrupção num caso envolvendo candidaturas femininas fantasmas nas eleições de 2018 no PSL, o partido até àquela altura de Bolsonaro.

Protagonista de sucessos estrondosos, sobretudo em telenovelas, Regina Duarte é uma das raras artistas do país simpatizantes de Bolsonaro, razão pela qual outros atores já criticaram a sua posição. Atores como José de Abreu e Gregorio Duvivier, além do realizador Kleber Mendonça Filho e a documentarista Debora Diniz estão entre os que comentaram a possível nomeação.

"Personagem e criatura se confundem na adoração que ela devota ao presidente Bolsonaro", escreveu a documentarista Debora Diniz no Twitter. "Ela é matéria que incorpora a libido do poder patriarcal. Uma mulher em submissão encantada."

José de Abreu reagiu com ironia à possibilidade de Regina assumir o posto: "Breaking Faking News: Regina Duarte exige a recriação do Ministério da Cultura para participar do governo. 'Sempre fui a protagonista, não será agora que vou ser a secretária. Quase não tem fala'", escreveu.

Na mesma rede social, Duvivier escreveu: "Se a Regina Duarte aceitar, quem ela vai nomear para o ponto eletrónico?", questionou, citando um recurso que a atriz já admitiu usar para lembrar as suas deixas.

Já o realizador do aclamado Bacurau, Kleber Mendonça Filho, partilhou uma notícia sobre a nomeação com a mensagem: "O caos reina", em inglês.

A empresária e produtora cultural Paula Lavigne, organizadora do movimento 342 Artes, disse que Regina "é de direita, mas não é nazi". "Acho que na situação de desmonte total da cultura que estamos vivendo ter Regina Duarte pode ajudar. Ela é de direita, mas não é nazi: redução de danos", disse ao jornal O Estado de S. Paulo.

O escritor Paulo Coelho avaliou que "não faz diferença" se a nova secretária da Cultura seja Regina Duarte ou outra pessoa, porque "quem manda" é Bolsonaro e seus filhos, também noticiou O Estado de S. Paulo. "Regina Duarte ou outro não faz diferença - quem manda no governo é o líder e seus filhos. [O ministro da Justiça Sergio] Moro, [o ministro a Economia Paulo] Guedes, [o vice-presidente Hamilton] Mourão, todos já sabem disso: antes tentaram ter voz própria e agora não piam mais", escreveu o escritor no Twitter.

Regina Blois Duarte, que completa 73 anos no dia 5 de fevereiro, nasceu em Franca, cerca de 450 quilómetros a norte de São Paulo, mas cresceu, sobretudo, em Campinas, a cerca de cem quilómetros da maior cidade do Brasil.

Filha de uma professora de piano, de quem terá herdado a inclinação artística, e de um militar, a quem pode ser atribuído o lado conservador da sua personalidade, estreou-se no teatro aos 22 anos, interpretando Compadecida, personagem que dava nome à peça baseada no Auto da Compadecida, obra de Ariano Suassuna, ao lado de outros gigantes, como Armando Bógus, 17 anos mais velho, ou Antônio Fagundes, dois anos mais novo.

Na televisão, começou ainda mais cedo, completando 55 anos de carreira em 2020. Ganhou a alcunha de "namoradinha do Brasil" depois de interpretar Patrícia na novela Minha Doce Namorada, já na TV Globo, em 1971. Seguiram-se êxitos como a novela Selva de Pedra - que chegou a 100% de audiência - e a série Malu Mulher, em 1979.

Como Malu, a atriz tornou-se um ícone do feminismo no Brasil - e em Portugal, onde a série foi exibida -, abordando temas até então tabu na televisão brasileira, mais ainda durante o período da ditadura militar (1964-1985), como sexo, orgasmo, violência doméstica, divórcio, menstruação, aborto e virgindade. Por causa disso, alguns episódios sofreram ação da Censura Federal e veto.

Na época, Regina era parada e aplaudida nas ruas por mulheres que se identificavam com a personagem. Chegou a ir a Cuba, por causa do sucesso da personagem, a convite de Fidel Castro, numa comitiva em que participou também o realizador e seu marido na época, Daniel Filho.

"Regina e eu fomos juntos para Cuba, e fomos recebidos pelo próprio Fidel Castro", recordou Daniel filho, em entrevista ao F5, suplemento do jornal Folha de S. Paulo, na qual disse não entender por que razão a ex-mulher foi para a direita.

"Simplesmente não entendo. Compreendo que não há razão de as pessoas serem firmes para sempre, mas não entendo essa mudança dela para a direita, assim dessa forma. Ela era de esquerda mesmo, eu continuo sendo", afirmou o ator e realizador.

Em 1985, quando interpretava um dos seus maiores sucessos - Viúva Porcina em Roque Santeiro - a atriz fez a sua primeira intervenção pública numa eleição. Recomendou o voto em Fernando Henrique Cardoso, do PSDB, de centro-direita, para prefeito de São Paulo em vez de Eduardo Suplicy, do PT, de esquerda. O objetivo, dizia, era concentrar o voto útil contra o favorito Jânio Quadros, visto como um populista de direita com discurso anticorrupção.

"Votar em Suplicy é ajudar o Jânio. Não vamos nos esquecer do que aconteceu na Alemanha na década de 1930. Os democratas se dividiram e o que aconteceu? Hitler subiu ao poder com pouco mais de 30% dos votos! Então este é o momento em que a gente não pode vacilar."

Jânio acabaria por ser eleito, mesmo assim.

Mas foi a sua intervenção antes das eleições presidenciais que elegeriam Lula da Silva, em 2002, que a colocaram no lado contrário da barricada da maioria da classe artística. Ela apoiou José Serra, o candidato da continuidade do governo federal de Fernando Henrique Cardoso.

"Eu estou com medo! Faz tempo que eu não tinha esse sentimento. Porque o Brasil, nessa eleição, corre o risco de perder toda a estabilidade que foi conquistada. Eu sei que muita coisa não foi feita, mas também tem muita coisa boa para ser realizada. Não dá para ir tudo para a lata do lixo. Nós temos dois candidatos à presidência. Um eu conheço, que é o Serra. É um homem dos [remédios] genéricos, do combate à sida. O outro, eu achava que conhecia, mas eu já não o conheço mais. Tudo que ele dizia mudou muito e isso dá medo na gente. Outra coisa que dá medo é a volta da inflação desenfreada. Lembra? 80% ao mês. O futuro presidente vai ter de enfrentar a pressão da política nacional e internacional. E vem muita pressão por aí. É por isso que eu vou votar no Serra, que me dá segurança, porque dele eu sei o que esperar. Por isso eu voto 45. Voto Serra e voto sem medo", disse, em tempo de antena.

Mais recentemente, apoiou os movimentos pela destituição de Dilma Rousseff e confessou simpatizar com a candidatura presidencial de Bolsonaro. "Quando conheci Bolsonaro encontrei um cara doce, um homem dos anos 1950, que faz piadas homofóbicas, mas da boca pra fora, um jeito masculino como o [escritor Monteiro] Lobato, que chamava o brasileiro de preguiçoso e dizia que lugar de negro é na cozinha, sem nenhuma maldade."

Criticada com violência pelos seus pares artistas, Regina Duarte foi a um talk show da Globo, o Conversa com Bial, explicar o que sentia, em maio do ano passado. Começando por recordar a opção por Serra em vez de Lula, em 2002: "Nunca me arrependi do que disse. O PT foi muito agressivo, dono da verdade. Hoje, estou profundamente triste, porque amo o meu país. As pessoas devem pensar melhor no voto com esta nova chance."

Mas destacou ter lutado contra a ditadura militar, um período político que agrada a Bolsonaro, citando inclusivamente o 25 de Abril. "Eu fugi de cavalos, me enfiei debaixo de porta para fugir da cavalariça, eu participei de palanques ao lado de Lula pelas 'Diretas já', pela amnistia ampla geral e irrestrita, defendi a Revolução dos Cravos. Tenho uma história de participação que não é de hoje."

E disse ter enfrentado a censura durante a exibição de Malu Mulher. "Mas eu nunca me declarei uma feminista, mesmo fazendo a Malu. Eu não acho que as coisas são por aí, acredito que há caminhos intermediários. Embora tenha tido atitudes de vanguarda, eu fui e continuo conservadora."

Nos últimos tempos, através das redes sociais declarou apoio incondicional a Sergio Moro, ministro da Justiça e juiz da Operação Lava-Jato, simpatia pela flexibilização do uso de armas de fogo, um dos cavalos de batalha de Bolsonaro, e nos últimos dias repúdio à escolha de Democracia em Vertigem, documentário considerado com viés de esquerda sobre o impeachment de Dilma, para os Óscares.

Até surgir a demissão de Roberto Alvim, que ontem se declarou vítima de uma conspiração satânica para sair do cargo, e tornar-se membro do governo de Bolsonaro.

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