Refundar a função do Estado

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Montras partidas, lojas pilhadas, cocktails Molotov, carros a arder. A descrição podia encaixar nas ruas de Caracas, onde milhares de manifestantes protestam contra a instabilidade governativa da Venezuela. Mas não é sobre Caracas que escrevo. É Hamburgo, Europa. Há meros dias, aqui ao lado.

As manifestações antiglobalização por ocasião da reunião do G20 foram catastróficas. O bairro Schanzenviertel, onde se localiza um enclave anarquista, tornou-se epicentro da revolta violenta e descontrolada. Um funcionário de limpeza de Hamburgo relatava à televisão que já tinha visto muito caos, mas o que encontrou no sábado de manhã foi um cenário do inferno. Quando terminava o fim de semana, 213 polícias tinham sido feridos e pelo menos 70 manifestantes receberam apoio médico nos hospitais de Hamburgo.

O jornalista Sven Becker (Spiegel) relata o que viu no terreno durante a noite e conclui que a destruição foi fruto da união de motivações: "Quando o prazer consumista se encontra com a crítica ao consumismo." É a violência como fim em si mesmo, produto radical da cultura de eventos da sociedade. E, se se encaixar ainda uma selfie para registar o momento do furto, melhor fica o "ativista" nas redes sociais. Enganam-se os que tentam romantizar o que quer que seja que utiliza o Black Block como arma de arremesso ou fecham os olhos às suas ações.

Claro que quem tem culpa são os desordeiros, anarquistas, em suma os extremistas violentos que não respeitam a autoridade democrática. Sim, autoridade democrática. Porque a autoridade na Europa é uma evidência democrática e não autocrática. E com as suas ações bárbaras nas ruas de Hamburgo estes extremistas atingiram o seu fim: lançar o medo na população, que ficou barricada nas suas casas, receando pela vida e pelos pertences. Mas não se deve esquecer que devemos sempre analisar a reação das autoridades em qualquer situação de urgência extrema. Não só a reação mas também a preparação prévia que encetaram (ou não). Afinal de contas, para que serve o contrato social entre cidadão e Estado, se a confiança nas instituições é irremediavelmente quebrada por um bando de encapuzados, junkies da adrenalina da violência?

No debate em torno da dimensão dos desacatos em Hamburgo, surge então na opinião pública alemã um termo infelizmente demasiado familiar a Portugal nas últimas semanas: "falhanço do Estado". A missão dos 20 mil polícias destacados para a reunião do G20 era dupla: segurança dos chefes de governo e da população de Hamburgo no contexto da chegada de milhares de manifestantes violentos. A primeira parte da missão foi salvaguardada. A segunda evidentemente falhou. É ainda questionada a própria decisão de dar lugar à reunião do G20 numa cidade como Hamburgo, devido a características de planeamento urbano que dificultam o controlo em situações extremas. Essas são questões que politicamente são colocadas, seja à cidade seja ao governo federal.

Enquanto o pandemónio decorria nas ruas do Schanzenviertel, os governantes encontravam-se na sala de concertos do Elbphilharmonie, marco arquitetónico que custou 800 milhões ao erário público de Hamburgo. A coincidência de a cidade ter governação socialista não nos escapa, quando se tem em mente que, ao contrário da tendência dos outros estados federais (-1,3%), a dívida pública de Hamburgo tem subido (+8,9%). Uma questão de prioridades.

Falhanço do Estado, noção que em Portugal também se debate. Mas um debate tem de ter consequências em democracia. Porque as situações de emergência - sejam manifestações, incêndios ou furtos que escapam ao controlo das autoridades - são o cerne para o qual submetemos todos os anos as declarações de IRS e para o qual pomos uma cruz no boletim de voto nos atos eleitorais.

Deputada do PSD

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