"Refugiados de Souda ainda vivem em tendas e na lama"

Voluntária portuguesa relata situação vivida num campo da ilha grega de Chios, onde vivem mais de 800 migrantes à mercê da neve e do frio, que já matou cinco na Europa
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Cátia Domingues achava que a situação no campo de refugiados em Nea Kavala, no norte da Grécia, era complicada. Mas isso foi antes de chegar há dois dias ao de Souda, na ilha de Chios. A portuguesa de 29 anos, que está a fazer voluntariado, ficou chocada por ver mais de 800 migrantes a viver em tendas - com mais a chegar diariamente de barco. Onde ainda há dias havia neve, há agora lama por causa da chuva. Uma melhoria relativa, já que não há infraestruturas no campo. Comparado com Souda, os contentores húmidos de Nea Kavala eram um "condomínio de luxo", diz.

"Este campo tem que fechar. Aqui não há condições nenhumas e não as querem criar", conta Cátia por telefone ao DN. "O que acontece não só aqui como em muitos outros campos é que não querem construir instalações, por mais precárias que possam ser, porque acham que isso pode dar a ideia de que isto é permanente. Mas há pessoas que estão aqui há dez meses...", acrescenta. Quanto à neve e ao frio, que felizmente está a diminuir, diz que os habitantes do campo usaram as economias para comprar aquecedores, mas que a câmara chegou a cortar-lhes a eletricidade porque estavam a gastar demasiada. A organização para a qual faz voluntariado comprou um gerador para colmatar essa falha.

A onda de frio que assola a Europa já causou a morte a pelo menos cinco refugiados desde o início do ano, segundo dados do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR). Um afegão de 20 anos morreu por complicações devido à exposição ao frio depois de cruzar à noite o rio Evros, na fronteira entre a Grécia e a Turquia. As temperaturas estavam abaixo dos dez graus negativos. Mais a norte, os corpos de dois iraquianos foram encontrados no sudeste da Bulgária, depois de terem cruzado a fronteira turca, assim como o de uma jovem somali e de um paquistanês.

Na Sérvia, onde o percurso de muitos migrantes foi interrompido por causa do fecho da fronteira com a Hungria, os homens que não têm lugar nos campos procuram abrigo em armazéns abandonados nos arredores de Belgrado, queimando plástico no interior do ediício apesar dos problemas para a saúde.

"Salvar vidas deve ser uma prioridade e apelamos às autoridades em toda a Europa para fazerem mais para dar assistência e proteger s refugiados e migrantes", disse uma porta-voz do ACNUR, Cecile Pouilly. "As crianças são particularmente propensas a doenças respiratórias em tempos como estes. Isto é sobre salvar vidas, não burocracia e manter acordos burocráticos", acrescentou, dizendo que a situação mais complicada é na Grécia.

E é nas ilhas que o problema é maior, por causa de problemas de sobrelotação e da falta de espaço para colocar contentores que ofereçam melhores condições do que as tendas - e os migrantes continuam a chegar, ontem eram esperados mais 27 em Chios, por exemplo. O governo grego enviou no início da semana passada um navio de guerra para Lesbos, para poder tirar cinco centenas de migrantes das tendas que dias antes se desmoronavam devido ao peso da neve.

Em Chios, onde Cátia está "até o dinheiro dar", a situação não é melhor. "O campo de Souda é miserável, as pessoas ainda vivem em tendas, na lama. As casas de banho são buracos e a água é gelada", explica, contando que toda esta "selva" está a duas ruas de restaurantes e cafés da moda. "A ilha de Chios é toda uma Ibiza a acontecer", explica, dizendo que os voluntários não são bem vindos porque os habitantes dizem que o campo acaba com o turismo. "Nós temos que tirar os coletes e as identificação assim que saímos do campo. As pessoas aqui não gostam de nós", refere, dizendo que o campo já foi alvo de ataques da extrema-direita.

No interior do campo, também ninguém se sente seguro, nem mesmo os voluntários. "Somos 40 e acho que nenhum de nós se sente seguro, porque ouves as histórias de violência, há assédio", conta Cátia, dizendo que há sempre dois carros da polícia enquanto os voluntários lá estão. O problema é o s homens (em Souda estão muitos homens solteiros, com idades entre os 20 e 30 anos) ficam horas sem poder fazer nada. "Eles estão a passar-se", diz a portuguesa. "Tem que se acelerar o processo para tirá-los daqui, porque estão a criar-se guetos. São pessoas que estão cade vez mais chateadas com isto, que começam a beber, a roubar. Isto só vai piorar, eles estão a criar delinquentes", alerta. Muitos países prometeram acolher refugiados, mas o processo arrasta-se e as promessas não são cumpridas.

O dia no campo começa com a distribuição do pequeno-almoço. "Eles apresentam os cartões de comida e distribuímos pacotes de leite, fruta... Primeiro para as pessoas aqui do campo, depois para as que vêm do campo vizinho de Vial, onde a comida é ainda pior. Eles apanham o autocarro e vêm para ficar com os resros", explica a portuguesa, que fez uma pausa na carreira na publicidade para estar na Grécia. Após o pequeno-almoço (e se não estiver a chover), há atividades para as crianças. O almoço é cozinhado por uma organização basca, o jantar era até ao dia de ontem garantido por outra organização. "Amanhã [hoje] não sei como vai ser", refere.

Comparado com Chios, o campo de Nea Kavala é um luxo. "Apesar de as condições não serem melhores, há uma máquina mais oleada", explica, contando por exemplo como foi criada uma "loja" para "vender" as roupas doadas . Cada semana, as famílias recebem dinheiro fictício que podem trocar. "Eles poderem escolher dá-lhes outra dignidade." Nesse campo, as famílias vivem em contentores e têm um candeeiro de querosene, onde aproveitam para cozinhar. "Nós distribuíamos vegetais, arroz e outras coisas e elas cozinhavam coisas incríveis", relembra.

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