Refugar
Hoje, a palavra refugar vem a propósito de duas espécies selvagens cuja população é alvo frequente de refugo. A razão é habitual e comum às duas – competem de mais com o homem – mas as consequências sobre as populações são bem diferentes. As espécies são a foca e o lobo e é sobre elas que vamos falar hoje.
A foca de que falamos hoje, a foca-da-gronelândia (Phoca groenlandica), vive um pouco por todo o lado do Atlântico Norte e Árctico, mas tem uma expressão prevalecente nas costas orientais do Canadá. Durante milhares de anos a foca forneceu roupa e comida a esquimós e outros povos indígenas, mas este equilíbrio quebrou-se quando os europeus invadiram aquelas paragens e começaram a matar focas aos milhões para alimentar uma indústria de peles em expansão. Até meados do século passado o número de focas foi decrescendo (nos anos 1970 existiam cerca de dois milhões de indivíduos), mas num esforço de contenção, que incluiu o estabelecimento de quotas de abate, conseguiu-se a recuperação até estabilizar nos actuais 5,5 milhões. Mas então por que se fala agora em refugo e ainda por cima patrocinado pelo próprio governo canadiano? Essa é a segunda parte da história.
Depois de se estabilizar a população da foca-da-gronelândia começou a perceber-se que esta tem um apetite voraz e, ainda por cima, que elegeu para pitéu principal uma espécie de peixe que o homem tanto aprecia – aquele que já foi apelidado pelos portugueses como o «fiel amigo», o bacalhau-do-atlântico (Gadus morhua). Ou seja, a foca entrou para a lista de animais a refugar não porque é um animal perigoso ou porque ocupa zonas onde se quer construir campos de golfe ou aparthotéis, mas apenas porque consome muito bacalhau e há pessoas que acham que os stocks de peixe não chegam para tanta boca. É claro que se pode argumentar que o quase desaparecimento do bacalhau dos mares canadianos se deve mais ao exagero das frotas pesqueiras do que ao impacte da foca, mas como esta não tem lista de refugo de humanos, somos nós, mais uma vez, que decidimos quem tem razão.
E agora entra a polémica: o homem deve intervir na natureza e refugar os excessos? Uns defendem que é preciso controlar a população das focas enquanto outros se indignam por verem ser abatidos animais, muitas vezes crias com poucas hipóteses de fugir, apenas para garantir mais bacalhau para os nossos pratos. Estes opositores também se revoltam com os métodos de abate que tentam não estragar a pele valiosa. As imagens das focas bebés com grandes olhos pretos envoltos numa linda pele branca têm sido um dos principais aliados desta luta. Os defensores dizem que o refugo é necessário porque sem predadores as focas irão multiplicar-se, arruinar o sector das pescas e desequilibrar o próprio ecossistema. Defendem ainda o uso das peles por serem biodegradáveis, um recurso renovável e muito mais duradouras do que as fibras sintéticas e poluidoras que as substituem. Para já, como resultado desta acesa disputa, a União Europeia baniu a importação de peles de foca, o que terá um impacte bastante grande sobre a indústria da caça à foca, apesar de o grande mercado das peles estar na Rússia, China e Noruega.
Outra espécie rotineiramente refugada é o lobo. Com um território que ocupa quase todo o hemisfério norte, esta espécie é um adversário de longa data dos humanos, apesar de estar na origem do nosso melhor amigo. Mais uma vez a razão para o refugo é a competição pelo alimento – os humanos criam gado e o lobo, sem pedir autorização, vai cobrando algum imposto. Só que neste caso a culpa não é inteiramente do lobo porque ao invadirmos o seu território eliminamos todos os itens da sua dieta natural. Pior, colocamos nos mesmos lugares peças apetecíveis que em tudo se assemelham às presas que o instinto do lobo manda caçar. Não é, portanto, de admirar que, de tempos a tempos, o animal não resista. Caramba, um lobo não é de ferro.
Para o lobo há duas estratégias diferentes – subsidiar as perdas em gado ou expulsar/matar os mais atrevidos. A ex-governadora do Alasca era muito a favor desta segunda hipótese e por isso pôs os seus capangas em helicópteros a perseguir tudo o que tinha pêlo e uns caninos mais aguçados. Em contraste, na Europa, prefere-se a ideia da compensação, mas mesmo esta parece ter limites. Que o digam os três lobos que as autoridades suíças se preparam para matar com a justificação de que já comeram mais do que o seu quinhão de ovelhas. Sendo suíços, as contas estão muito bem feitas – um lobo que mate mais do que 25 cabeças de gado num mês ou mais de 35 numa estação é condenado à morte. Sem direito a recurso!
Refugar três lobos poderá não parecer muito dramático, tendo em conta os prejuízos causados, mas devemos lembrar-nos de que a população de lobos suíços já se extinguiu por uma vez e que, depois da reintrodução, não deverá haver mais de seis ou sete a circundar aquelas montanhas. Ou seja, ao matar três provavelmente estar-se-á a condenar o lobo suíço novamente à extinção.
É importante repensar a ideia do refugo de animais selvagens. Será mais importante a defesa do ser vivo em si ou do ecossistema em que se insere? O homem tem capacidade e elementos para decidir quando eliminar uns indivíduos e quantos pode eliminar? Ou, como já aconteceu muitas vezes, arrisca-se a que a emenda seja pior do que o soneto?