Reformar não é fechar

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A história do SNS é feita de irrefutáveis sucessos, mas também de penalizantes equívocos. Ao longo da sua evolução, de quase 4 décadas, a sua maior dificuldade sempre esteve no escasso acerto do planeamento estratégico. Um dos aspetos mais impactantes deste dessa falha está na subvalorização dos efeitos da demografia, das condições de vida e da persistência de desigualdades. A par desta limitação junta-se a dificuldade de antecipação face a um contexto cada vez mais desafiante de inovação tecnológica e terapêutica, mas de grande exigência de recursos. Por estas razões, tantas vezes se tem dito que a salvaguarda do SNS requer um acordo político alargado no tempo e no perímetro alargado da respetiva legitimidade parlamentar.

As sucessivas crises do SNS têm sido geridas, quase sempre, do ponto de vista conjuntural. Na maior parte das vezes através do reforço orçamental para além das dotações fixadas no início de cada exercício. Ao longo do tempo tem sido repetida a ideia de subfinanciamento e, consequentemente, de suborçamentação. Desde a sua criação, em 1979, o SNS experienciou diferentes momentos de reforma cujo impacto estrutural não foi suficiente para assegurar, simultaneamente, um equilíbrio entre desempenho e sustentabilidade. São múltiplos os exemplos positivos desde a dinamização do mercado dos medicamentos genéricos, à criação da rede nacional de cuidados integrados passando pelas medidas de transformação digital e o programa nacional de hospitalização domiciliária. Ainda assim subsistem problemas resultantes de medidas tomadas, há vários anos, sem a adequada ponderação estratégica. São disso exemplo o encerramento, em critério largo, de serviços de proximidade cuja consequência foi o continuado crescimento da procura de urgências hospitalares fazendo de Portugal, nessa matéria, um dos piores países da OCDE. Tal como a criação, apressada e desligada das necessidades, de centros hospitalares de forma igual em todo o país ou a supressão das carreiras profissionais aquando da crise financeira sem uma reponderação global e estratégica.

A reforma do SNS, antes de tudo, tem de ter em conta o direto à proteção na saúde de todos os cidadãos independentemente do seu local de residência. As medidas de melhoria do funcionamento e desempenho do SNS não passam por propostas a "régua e esquadro" que ignoram o papel dos cuidados de saúde na atenuação das desigualdades e no reforço da coesão do país. Não é aceitável que se façam propostas de encerramento de serviços sem avaliar as condições locais em termos de necessidades, capacidade instalada, potencial de cooperação ou requação do modelo de gestão de recursos. O fecho aleatório de serviços e de respostas, de forma simplista e tecnocrática, apresentada como medida de resolução expedita dos problemas teve, no passado, como consequências o agravamento dos desequilíbrios nas relações entre oferta e procura funcionando, ao mesmo tempo, como um estímulo à proliferação de unidades privadas desarticuladas e afastadas de uma ideia de rede colaborativa. As populações precisam de segurança e de respostas seguras e previsíveis. O Estado tem a obrigação constitucional de garantir o seu provimento redefinindo, se necessário, os modelos de resposta pública ou aprofundando os mecanismos de planeamento e de concertação entre os diferentes setores. Ao Estado não cabe, seguramente, desertar do seu dever abandonando o interior e recuando, sistematicamente, à primeira dificuldade para os grandes centros.


Médico e ex-ministro da Saúde

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