Referendo ao "Novo Cazaquistão" é um teste ao poder de Tokayev
Uma das alterações constitucionais previstas no referendo que os cazaques votam hoje passa por retirar parte dos poderes do presidente, transformando o Cazaquistão de uma "república superpresidencialista" numa república com um parlamento mais forte. Mas seis meses após os protestos violentos no país e depois de ter conseguido apagar as marcas deixadas no poder pelo seu antecessor Nursultan Nazarbayev e pelos familiares, o presidente Kassym-Jomart Tokayev, de 69 anos, deverá sair desta consulta popular mais forte do que nunca para conseguir a reeleição em 2024.
A violência de janeiro, que começou em manifestações no oeste do país devido ao aumento dos preços do gás de petróleo liquefeito mas se espalhou e evoluiu pelas mãos do que o governo apelidou de "terroristas" com o alegado objetivo de derrubar o presidente, deixou pelo menos 230 mortos. Para travar a situação, particularmente grave na antiga capital Almaty, Tokayev pediu ajuda à Organização do Tratado de Segurança Coletiva (liderada pela Rússia), que fez pela primeira vez uma missão do género e enviou duas mil tropas - que não estiveram envolvidas no controlo dos protestos, mas principalmente vigilância de edifícios-chave, tendo saído ao final de cerca de dez dias.
No rescaldo da violência, o presidente retirou os privilégios ao antecessor, de 81 anos - que muitos acreditavam continuar a mandar desde os bastidores com o apoio dos familiares que deixou em cargos de poder e à frente de importantes empresas. Nazarbayev, que esteve na presidência quase três décadas e liderou a transição da ex-república soviética para a independência, mantinha o cargo de "líder da nação". Mas apesar de o seu papel histórico não ser posto em causa, muitos já questionavam a influência que detinha. Após os eventos de janeiro, Tokayev começou a fazer uma limpeza à casa (um dos sobrinhos de Nazarbayev foi mesmo preso por desvio de fundos) e acelerou as reformas que já tinha começado e que a revisão da Constituição para a criação do "Novo Cazaquistão" quer cimentar.
A 16 de março, Tokayev lançou o pacote de alterações destinado a responder diretamente aos eventos de janeiro - uma reforma política estava prevista para setembro deste ano, mas foi antecipada devido ao que aconteceu. Em causa está a revisão de um terço dos artigos da Constituição aprovada em 1995, que entre outras coisas retira o cargo de "líder da nação" a Nazarbayev e proíbe familiares do presidente de deterem cargos públicos.
Nas suas primeiras declarações desde janeiro, enviadas por escrito a vários media cazaques, Nazarbayev apoiou esta semana a reforma de Tokayev, dizendo que a sua família não deveria estar acima da lei. "Se algum dos meus familiares usou o meu nome atrás das minhas costas como desculpa para infringir a lei, então devem ser responsabilizados", disse. Ao abrigo das alterações propostas, o chefe de Estado é obrigado a afastar-se de cargos partidários - o próprio Tokayev já abdicou da liderança do Amanat (até há poucos meses conhecido como Nur-Otan).
Outras mudanças passam por restabelecer o Tribunal Constitucional e dar mais poder ao Mazhillis, a câmara baixa do parlamento bicameral, com o Senado a já não ter a capacidade para legislar, apenas para aprovar as leis passadas pelos 98 deputados. Estes serão eleitos também de forma diferente: 70% deles em listas, de forma proporcional, e os restantes 30%, eleitos diretamente. A nível das autoridades locais, abre-se também a porta a eleições diretas nas grandes cidades e regiões. Mas fica muito aquém do que é pedido pelas vozes mais críticas, uma vez que os candidatos têm que ser pré-selecionados pelo presidente.
No referendo deste domingo, todas as mudanças são incluídas numa só questão - "aceita ou não as mudanças e adições à Constituição?" Isso impossibilita um debate mais pormenorizado sobre cada uma das propostas - ou se aceitam todas ou se chumbam todas - e transforma a consulta num teste à popularidade do próprio Tokayev. O presidente, cujo mandato termina em 2024, deverá concorrer à reeleição. O referendo é "parte de um ensaio para a eleição presidencial", disse à Reuters o analista político Dosym Satpayev, referindo que Tokayev vai ver o apoio à reforma como votos a seu favor.
Tokayev já deixou contudo claro que não pretende que a reforma constitucional sirva para pôr a zeros o número de mandatos. "Questionam-me, tanto em casa como no estrangeiro, se o atual presidente pretende alargar os seus mandatos, isto é, fazer reset ao seu mandato presidencial através do referendo. Eu responde: não existe tal intenção e nunca haverá", afirmou, citado pelo jornal Astana Times, durante uma visita a Almaty.
Segundo as pesquisas oficiais, cerca de 84% dos cazaques apoiam a iniciativa presidencial de fazer um referendo para aprovar as reformas, sendo que 76,5% dizem que vão participar na consulta. De acordo com esta sondagem feita a 1200 cidadãos, 79% apoiam as reformas constitucionais propostas e 80% apoiam o plano de reformas de Tokayev.
susana.f.salvador@dn.pt