Refém dos independentistas, nova legislatura de Sánchez condenada à instabilidade
Pedro Sánchez vai conseguir o seu objetivo: continuar a ser presidente do Governo espanhol depois de perder as eleições legislativas do passado 23 de julho. Tal como diz a Constituição espanhola, o chefe do Executivo é o candidato que mais apoios tem no Congresso dos Deputados, e não o mais votado no sufrágio.
Mas para garantir os votos que permitam a sua investidura - o debate está marcado para amanhã e quinta-feira -, Sánchez teve que fechar acordos com sete partidos, e nem todos de esquerda. Primeiro com o Sumar, que será seu parceiro de Governo, e depois com os bascos do Bildu e do PNV, os catalães da ERC e do Junts per Catalunya, os galegos de BNG e os canários da CC. Todos estes partidos votarão sim a Pedro Sánchez para primeiro-ministro, mas cada um deles pedirá algo em troca. Será um governo progressista com alguns sócios conservadores e muito marcado pela sua debilidade parlamentar e a sua instabilidade.
O facto de o apoio dos independentistas catalães estar condicionado a uma lei de amnistia abre uma grande lista de questões sobre como vai ser o próximo executivo, o que vai poder fazer e o que vai ter que ceder para Sánchez continuar no poder ao longo dos próximos quatro anos. Tudo isto num momento de grande contestação social, como ficou refletido nas 52 manifestações organizadas por todo o país no passado domingo em contra de dita amnistia.
"O próximo Governo vai ter uma legislatura muito complicada, sujeita às vontades do que queira o prófugo Carles Puigdemont, que já disse que vai trabalhar todos os dias nos compromissos tão graves para o futuro de Espanha como a lei da amnistia, o referendo de autodeterminação ou um sistema fiscal próprio para a Catalunha", afirma Paloma Cervilla, jornalista de The Objective e analista política em rádio e televisão. Alerta para os perigos dos independentismos, também do basco, que vão "intervir" no Governo e lembra que o Bildu "é herdeiro político do grupo terrorista ETA". Neste cenário, Cervilla espera que todos os independentistas aproveitem a debilidade de Sánchez no Parlamento para "atingir todas as cedências que vão afetar gravemente a igualdade dos espanhóis".
O líder socialista vai ter que enfrentar igualmente a contestação nas ruas, "em setores como a Justiça, os empresários e uma parte importante da sociedade que considera as suas cedências ao Junts um golpe de Estado contra a democracia espanhol", sublinha Cervilla. Sem esquecer que Bruxelas já pediu explicações a Sánchez sobre a lei da amnistia, "e até poderia retirar os fundos europeus se considerar, como denuncia a oposição, que a Justiça espanhola está politizada".
No seu últimos mandato, Pedro Sánchez teve uma atividade legislativa muito intensa, com 200 leis e muitas reformas aprovadas, algumas condicionado pela UE para garantir o dinheiro dos fundos europeus. Mas se olhamos para o futuro, "a equação é bem mais complicada. Ele precisa do Junts per Catalunya para tudo", afirma Inma Carretero, editora de Política da rádio Cadena SER. O partido de Carles Puigdemont já disse que tem uma chave muito poderosa "e vão estar sempre a bloquear. A capacidade do governo vai estar reduzida", acrescenta. Ou seja, vai ser um governo de mais gestão e desenvolvimento e menos de legislação.
O primeiro exemplo de governação em coligação em Espanha, entre PSOE e Unidas Podemos, realizou grandes reformas, entre elas a laboral. "Agora já estamos um pouco mais acostumados à coligação. Para os espanhóis esse aparecimento em público dos sócios foi uma experiência nova", sublinha a jornalista. Nos próximos quatro anos, se a legislatura chegar ao seu fim, o parceiro é o Sumar, de Yolanda Díaz, que tem uma boa e estreita relação com Sánchez, mas existe uma componente de instabilidade. "É preciso lembrar que o Sumar nasce da urgência das eleições, com a vontade de juntar todas as posições à esquerda do PSOE. Veremos, depois da investidura, como vão conviver. Os parceiros são diferentes, Yolanda Díaz não é Pablo Iglesias, mas há uma componente de instabilidade muito importante", acrescenta.
É suposta uma grande remodelação no governo, com novos rostos e sobretudo "com menos pastas, é esperada uma redução em número de ministros". E Inma Carretero lembra que esta renovação se vai produzir num momento em que o PSOE perdeu quase todo o poder governativo regional e "se deve posicionar para reconquistar as autonomias". Falta saber quem vai escolher Pedro Sánchez para esta difícil tarefa. Precisamente pelo facto de ter debilidade territorial, este Governo vai encontrar mais uma ofensiva: a autonómica. "O PP tem muito poder territorial e as Comunidades Autonómicas têm uma grande capacidade de gestão e muito orçamento. Será mais um elemento de pressão", aponta a jornalista da Cadena SER. Sem esquecer também que o Senado tem maioria do PP e vai ser outro campo de batalha porque "quer fortalecer o controlo sobre o Governo". Os populares contam além disso com uma importante implementação noutros poderes do Estado, "têm sintonia com o poder judicial, com empresários...", disse Carretero. O cenário para os próximos anos vai ser o de "um governo cercado pela oposição política e por outros poderes".
É esperada uma legislatura de muita polarização e crispação, com menos leis aprovadas, mas "vão ter de rentabilizar todas aquelas que já foram aprovadas e que vão fazer brilhar a sua gestão". Para a jornalista da Cadena SER este novo governo vai ter a difícil tarefa de acabar com algumas ajudas implementadas para combater a crise, por indicação de Bruxelas, "e veremos até onde vai criar tensão com os parceiros e com a sociedade". Medidas como a subvenção dos transportes ou do preço da luz que, em caso de acabar, vai criar contestação social. Tudo isto sem esquecer que para levar adiante as medidas deverão contar com parceiros conservadores, como é o caso do Junts per Catalunya e do PNV. A agenda social vai estar mesmo comprometida.
Os problemas podem chegar igualmente dentro dos seus parceiros do Sumar porque trabalhar com uma coligação de partidos é mais difícil que com um só, como foi até agora com a Unidas Podemos. É precisamente esta força política, agora liderada por Ione Belarra, que ficou com um papel secundário. Dos 31 deputados do Sumar só cinco são da Unidas Podemos quando estes últimos sozinhos conseguiram 35 em 2019. "Os cinco deputados da Unidas Podemos, liderados pela Ione Belarra, não vão bloquear a ação do Governo, mesmo que gostassem de o fazer", conta Cervilla. Tem-se falado da possibilidade de, depois da investidura, a Unidas Podemos abandonar o Sumar e ficar no grupo misto. Pablo Iglesias, na sombra, continua a mandar no partido "pode decidir ser uma dor de cabeça para Sánchez na aprovação de algumas leis".
Ao longo das últimas semanas muito se tem falado sobre a constitucionalidade ou não da lei da amnistia, mas também das dificuldades que vai trazer consigo este documento. "O Junts per Catalunya tentou encurtar ao máximo o prazo dos tribunais para que seja aplicada, mas vai depender do comportamento dos juízes", assinala Carretero. Recorde-se que a aplicação da reforma da lei da garantia integral da liberdade sexual não tem sido como esperava o Governo. Ainda por cima em 2025 haverá eleições na Catalunha, motivo pelo qual vai existir uma disputa constante entre os partidos catalães independentistas, ERC e Junts. "A aplicação da lei da amnistia vai ser um braço de ferro entre eles e com o Governo", acrescenta. A lei da amnistia vai levar o seu tempo para ser tramitada porque vai ter muitos obstáculos. "Há um longo caminho para a sua tramitação, mas os independentes sabem disso".
Javier García Roca, catedrático e diretor do Departamento de Direito Constitucional da Universidade Complutense de Madrid, afirma que o problema não vai estar na lei da amnistia (já existem casos anteriores em Espanha) mas sim na constitucionalidade em si do documento que acompanhe a dita lei. "Olhamos para o futuro, mas esquecemos que os juízes estão submetidos à lei", indica o jurista. Lembra que já há casos de amnistia em Espanha e não se mostra preocupado pela possibilidade de existir um referendo porque "nenhuma Constituição o prevê". Xavier Arbos, catedrático de Direito Constitucional na Universidade de Barcelona, considera que pôr em prática esta lei vai ser muito difícil e vai levar o seu tempo. "O PP vai apresentar o recurso de inconstitucionalidade e os juízes apresentarão também questões de inconstitucionalide". Ambos os constitucionalistas falam de pelo menos seis meses para que esta nova lei possa começar a ser aplicada.
Alberto Núñez Feijóo enfrenta a difícil tarefa de liderar a oposição depois de ter ganho as legislativas de julho e ficar a quatro votos da investidura. "Está confiante no seu poder autonómico, que é enorme, e na maioria absoluta no Senado, que pode fazer muito barulho, mas não vai ser determinante para parar a execução das exigências tão perigosas de Puigdemont", afirma Paloma Cervilla. A confirmação da existência da lei de amnistia aumentou o apoio a Feijóo "de um setor maioritário da sociedade espanhola e aumentou o também o apoio eleitoral para o PP". O líder popular vai ter que canalizar nos próximos quatro anos o mal-estar "através de uma oposição contundente", acrescenta. Dentro do PP ninguém põe em causa a sua liderança.
Quanto ao papel do Vox, Cervilla acredita que é um partido "em queda na direita espanhola", como mostrou o resultado das últimas eleições em que passaram de 52 para 33 deputados. Acredita que o seu futuro passa por chegar a um entendimento cordial com o PP porque ambos poderiam governar Espanha se a formação de Santiago Abascal tivesse aceite não se apresentar em algumas províncias onde o seu voto acabou por beneficiar a esquerda e prejudicar ao PP. "O centro-direita espanhol clama pela unidade e por deixar o enfrentamento. Os acordos em algumas comunidades autonómicas foram o primeiro passo, mesmo assinados a destempo antes das eleições gerais, e o PP tem que naturalizar os acordos como Vox, sem complexos" acentua. Não partilha desta opinião a jornalista da Cadena Ser que pensa que a tensão política que vai trazer Puigdemont, agora a ganhar protagonismo, "é um alimento para a extrema-direita, beneficia o Vox, como vimos nas últimas manifestações.
O tempo esclarecerá o papel que vai ter o próximo Governo na democracia espanhola sem esquecer que existem sempre imprevistos que podem mudar o rumo político ou condicionar o seu percurso. PSOE e Unidas Podemos sabem isso bem porque pouco tempo depois de formarem o governo de coligação chegou uma pandemia e mais tarde uma guerra que acabaram por alterar muitos dos seus planos.