Refazer o Reino Unido

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O Reino Unido tem desde ontem uma nova primeira-ministra, mas o futuro do país pós-União Europeia permanece incerto. Na verdade, são prováveis os atrasos prolongados na aplicação da decisão dos eleitores para sair da UE.

A primeira incerteza é a data em que serão iniciadas as negociações de saída. O processo deve ser concluído no prazo de dois anos após ser acionado o artigo 50.° do Tratado de Lisboa; mas a nova primeira-ministra, Theresa May, já disse que não gostaria de dar início às negociações até ao fim do ano.

A segunda incerteza é se as negociações podem, simultaneamente, resolver os termos de saída do Reino Unido da UE e os seus acordos comerciais futuros com o mercado único europeu. Enquanto o Reino Unido afirma que, nos termos do artigo 50°, os negociadores devem "ter em conta o quadro das relações futuras", o negociador comercial da UE tem insistido para que os acordos futuros sejam discutidos apenas após a saída britânica.

A terceira incerteza são os objetivos negociais britânicos. Será que o país vai tentar o pleno acesso ao mercado único (a opção norueguesa) ou apenas parte dele (a opção suíça)? Irá preferir a opção das baixas pautas aduaneiras canadianas ou apenas o comércio com a Europa, nas mesmas condições em que todos os membros da Organização Mundial do Comércio o fazem?

A quarta incerteza surge das preocupações dos eleitores com a imigração e a medida em que qualquer novo acordo comercial com a UE deve estar subordinado à restrição da livre circulação de trabalhadores. A nova primeira-ministra disse que não aceitaria um compromisso com o mercado único sem um acordo sobre a gestão da migração.

Em teoria, a opção Noruega - a adesão ao Espaço Económico Europeu - poderia ser estendida à inclusão de um protocolo tipo Liechtenstein sobre a limitação das autorizações de residência ou envolver a utilização da cláusula de salvaguarda do EEE, a qual pode permitir restrições em matéria de migração se as entradas aumentarem muito rapidamente. Mas, receosa de que outros possam exigir uma exceção semelhante, a UE teria dificuldades em concordar com uma tal mudança.

A quinta incerteza é a própria posição negocial da UE, começando por quem irá conduzir as negociações, a Comissão Europeia ou o Conselho de Ministros. A chanceler alemã, Angela Merkel, já deixou claro que não vai dar carta-branca à Comissão para negociar em nome da Alemanha. Para além desta questão existe outra: irá a Europa chegar a um acordo sobre a sua posição negocial definitiva antes das eleições presidenciais na próxima primavera em França e das eleições legislativas no próximo outono na Alemanha?

A sexta incerteza são as circunstâncias económicas em que as negociações terão lugar. O Reino Unido parece estar a deslizar para uma recessão com as empresas a deixarem os seus planos de investimento em espera. A pressão empresarial sobre o governo do Reino Unido para que aja mais rapidamente irá, por isso, aumentar, pois uma espera mais longa significa mais uma diminuição da confiança e, por sua vez, um enfraquecimento da posição negocial britânica.

A sétima incerteza é se o próprio Reino Unido consegue sobreviver. Lord North é recordado por ter perdido a união britânica com a América. Dois séculos depois, o primeiro-ministro cessante, David Cameron, pode ser recordado por perder duas uniões - com a Europa, e entre a Inglaterra e a Escócia. Enquanto os conservadores querem que a Escócia esteja num Reino Unido sem a Europa, os nacionalistas escoceses querem que a Escócia esteja numa Europa sem o Reino Unido. E com os republicanos da Irlanda do Norte, liderados pelo Sinn Fein, a exigirem uma votação sobre a reunião do país com o Sul, a própria existência do Reino Unido está agora na ordem do dia.

Há uma maneira de diminuir a incerteza e o risco: o governo deve anunciar rapidamente que irá negociar com a UE com base na opção Noruega de adesão ao EEE. E deve deixar claro que os cidadãos da UE residentes no Reino Unido são bem-vindos e podem ficar.

Esta abordagem daria ao Reino Unido aquilo que as empresas querem, o acesso ao mercado único. Embora o país ainda tivesse de contribuir para o orçamento da UE, poderia recuperar a responsabilidade pelas políticas agrícolas e das pescas e negociar os seus próprios acordos comerciais (por exemplo, com a China e a Índia). A adesão ao EEE traria uma vantagem adicional - dar à Escócia a igualdade de condições que ela pretende nas relações comerciais com os 27 membros da UE.

É também essencial resolver a controversa questão da migração. Qualquer solução genuína deve incluir um fundo para ajudar as comunidades cujas unidades de saúde, escolas e outros serviços públicos estão sob pressão por causa do crescimento acima da média da população. É também necessária uma aplicação mais rígida do salário mínimo e de outra legislação de proteção aos trabalhadores de modo a acalmar os receios de que os migrantes estão a originar uma baixa rápida dos salários. E as negociações sobre o EEE devem começar na base de que a nossa adesão incluiria um protocolo sobre a migração e a capacidade de utilizar a cláusula de salvaguarda se a pressão aumentar.

No entanto, uma oitava e ainda maior incerteza diz respeito ao futuro papel global do Reino Unido. Em particular, como irá o país responder à mudança irreversível do centro de gravidade da economia global para a Ásia e às inovações tecnológicas que estão a revolucionar indústrias e profissões e, assim, a aumentar as ansiedades dos eleitores sobre as suas perspetivas de emprego e meios de subsistência futuros?

O resultado do referendo revelou uma alta concentração de sentimentos pró-brexit em cidades que estiveram em tempos no centro da revolução industrial britânica, mas que se veem agora inundadas de fábricas e oficinas abandonadas, devido à concorrência asiática. Estas áreas rebelaram-se contra o conselho das elites políticas e empresariais para votarem pela permanência e, em vez disso, exigiram proteção contra as vicissitudes da mudança global. Os próprios slogans da campanha pela saída - centrada em trazer o controlo de volta para o país - alinharam com os movimentos populistas e protecionistas que estão a fraturar antigas lealdades políticas por todo o Ocidente.

O resultado expôs um Partido Trabalhista dividido entre uma liderança que eleva o protesto antiglobalização acima da conquista do poder e um grupo parlamentar que sabe que tem de explicar como a globalização pode ser gerida de acordo com o interesse público.

Mas os conservadores que governam também estão divididos sobre como responder à globalização. Alguns acreditam num "vale tudo" mundial; outros acreditam que o Reino Unido deve estar livre de envolvimentos estrangeiros; e um terceiro grupo quer, tal como os trabalhistas, fazer parte da UE, vendo esta não como o problema mas como parte da solução para a gestão da globalização. Mas, por causa dessas divisões, nenhum dos candidatos à liderança apresentou quaisquer propostas que abordem de forma significativa as queixas daqueles que se sentem deixados para trás.

Assim, o Reino Unido pós-referendo precisa de um debate mais abrangente sobre como vai lidar com os desafios da mudança global e como vai trabalhar com a comunidade internacional para o fazer. Um programa viável para a gestão da globalização iria reconhecer que cada país deve equilibrar a autonomia que deseja com a colaboração de que necessita. Isto incluiria políticas monetárias e fiscais coordenadas entre os países do G20; esforços renovados para expandir o comércio mundial; novas agendas nacionais que abordem a desigualdade e promovam a mobilidade social; e um foco muito concentrado na ciência, tecnologia e inovação como a chave para o crescimento futuro.

Enquanto a globalização parecer sem liderança, os manifestantes antiglobalização irão sufocar as reformas, calar acordos comerciais propostos, como o Acordo de Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento e a Parceria Transpacífico, e tornar as economias nacionais menos abertas. A enfrentar agora a vida fora da UE, o Reino Unido não pode ignorar ou contornar esses problemas globais. Os britânicos devem agora decidir se vão fazer face ao impulso protecionista que levou ao brexit e qual o papel que podem desempenhar para que a globalização funcione para todos.

Ex-primeiro-ministro e ministro das Finanças do Reino Unido

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