Reescrito no vento

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Quando Carol (Cate Blanchett) e Therese (Rooney Mara) se conhecem, no grande armazém em que a segunda trabalha, tudo as separa: a classe social, o comportamento público, o porte, as roupas, a gestão do tempo... E, no entanto, algo acontece que, na efémera suspensão de um olhar, envolve já uma radical intimidade - Todd Haynes filma o impulso amoroso como uma ferida irreparável na ordem do mundo.

Dizer que Carol é um filme sobre o amor de duas mulheres corre o risco, por isso, de reduzir aquilo que nos é apresentado a uma simbologia redutora. Não simplifiquemos, claro: como Blanchett muito bem recorda, trata-se de encenar uma relação que, pura e simplesmente, no começo da década de 1950, era criminalizada pelos valores dominantes na sociedade americana (e não só, como bem sabemos). Em todo o caso, nenhuma das personagens centrais se reduz a uma postura militante ou "reivindicativa". Porquê? Porque aquilo que Haynes procura é a delicada herança de um cinema que, afinal, nasceu sob o mesmo imaginário social e os mesmos valores morais que, de uma maneira ou de outra, determinam os movimentos de Carol e Therese.

Tal como em Longe do Paraíso (2002), centrado numa mulher (Julianne Moore) cuja crise conjugal envolvia algumas perturbantes derivações raciais, Haynes assume-se como discípulo de um cinema clássico cujo símbolo maior terá sido Douglas Sirk (1897-1987), o autor de Escrito no Vento (1956). O que distingue esse cinema não é o que se "mostra", em particular no plano sexual, mas sim a energia imensa de tudo aquilo que, não sendo do domínio do visível, marca o comportamento das personagens. Tanto Sirk como Haynes são, enfim, cineastas do domínio mais secreto do desejo - em boa verdade, não há imagens para "figurar" o que une Carol e Therese; mas o seu amor contamina todas as imagens.

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