"Ainda sou do tempo em que tinha de ferver seringas": a diabetes contada por quem vive com ela
Lurdes tinha 17 anos quando a sua vida sofreu um abalo: descobriu que tinha diabetes tipo 1. Para uma adolescente, a notícia trazia um mar de dúvidas e os primeiros tempos foram difíceis. As medições de glicemia e as injeções de insulina passaram a ser rotinas, tal como as mudanças na alimentação - "percebemos que estamos rodeados de alimentos que não devemos comer" - e os olhares de viés na escola de Almada onde estava na reta final do secundário. Uma falta de informação de colegas e professores que não condena. " Afinal de contas, quando soubemos que eu tinha diabetes tipo 1 até a minha mãe perguntou ao médico que medicamentos tinha eu de tomar para ficar curada. O médico respondeu que é uma doença crónica, que tinha de aprender a viver com ela".
Doze anos depois, Lurdes Soares, agora a viver em Barcelona, há muito que aprendeu essa lição. Tirou um curso superior, tem uma filha "perfeitamente saudável" e é hospedeira de bordo, com o que isso implica em termos de "loucura de horários". Tem só de ter o cuidado de comer antes de embarcar, porque teve hipoglicemias nos primeiros tempos na aviação. "Quando estamos lá em cima as quebras de açúcar são muito mais repentinas". Uma vida absolutamente normal que a diabetes nunca pôs em causa, como sublinha ao DN e também numa campanha da Associação de Jovens Diabéticos de Portugal para combater a falta de informação sobre a doença. Porque mais de dez anos depois, o medo em relação à diabetes que Lurdes sentiu mantém-se igual nas escolas, denuncia a AJDP.
O Dia Mundial da Diabetes assinala-se esta quarta-feira, uma doença que afeta mais de um milhão de portugueses, alguns milhares deles que ainda não saíram sequer do ensino obrigatório. A diabetes tipo 1 afetava, em 2015, 3327 jovens até aos 19 anos. Num texto que assinala a data, a AJDP acusa as escolas públicas de discriminarem alunos com a doença. "Ainda há escolas que não aceitam crianças com diabetes", titulava o comunicado de imprensa publicado na semana passada, uma frase que deixava no ar suspeitas de que há alunos que veem as suas matrículas serem recusadas. Suspeitas esclarecidas ao DN pela presidente da associação. "Crianças barradas, não temos. O que acontece é que as escolas informam os pais que não se responsabilizam em fazer tudo o que é preciso para acompanhar estas crianças", explica Paula Klose. "E fazem-nos por duas razões: por falta de informação, que gera medo em fazer alguma coisa mal; e por falta de pessoal nas escolas para tratar das crianças, seja na administração de insulina, seja no acompanhamento da comida".
São situações que se repetem por todo o país, garante a presidente da associação que apoia os jovens diabéticos, e que colocam dilemas aos pais: ou não têm mais opções e as crianças ficam nessas escolas, sendo os próprios a terem de acompanhar os filhos nas rotinas diárias; ou matriculam noutra escola.
Lurdes Soares até acha que teve muita sorte, porque apesar do desconhecimento dos outros e da vergonha que sentia por ter de medir a glicose ou comer na sala de aula, "foi sempre tudo muito fácil, porque as pessoas ajudavam". Mais tarde, já na Faculdade de Letras, em Lisboa, acabou por nem contar que tinha a doença, tirando aos colegas mais chegados. "Nos jantares de turma lá vinham os pedidos para que bebesse um copo ou comesse um doce."
[HTML:html|insulina.html|640|743]
Na prática, a rotina de uma criança com diabetes tipo 1 - uma doença crónica, que se desenvolve quando o pâncreas para de produzir a insulina de que o corpo necessita, enquanto a diabetes tipo 2 é caracterizada pela resistência à insulina e é provocada essencialmente por hábitos alimentares pouco saudáveis - passa por fazer uma aplicação de insulina à hora do almoço, pode ter de fazer um reforço à hora do lanche, e tem de ir fazendo a medição da glicemia durante o dia, o que ficou muito mais facilitado com os dispositivos eletrónicos colocados no braço, que evitam a picada no dedo. Depois tem de haver uma atenção especial à alimentação das crianças, para ter a certeza que não há nenhuma crise de hiperglicemia. Um apoio especialmente importante no primeiro ciclo, quando ainda são os adultos que têm de aplicar a insulina, sejam os pais, se estiverem perto da escola e tiverem disponibilidade, ou algum funcionário.
Flávia Ferra conheceu bem as duas situações. Diagnosticada com diabetes tipo 1 aos 9 anos, não deixava que ninguém lhe desse insulina na escola de Folgosa, na Maia, tarefa que confiava apenas à mãe. "Tinha medo", conta a jovem. "Depois, quando ganhei mais confiança, passou a ser uma auxiliar, e no 4º ano passei a conseguir fazer sozinha." Flávia tem agora 15 anos e já está no 10º ano, em ciências, no Castêlo da Maia.
Em apenas seis anos, autonomia passou a ser a palavra chave na sua relação com a doença, muito graças à tecnologia: à bomba de insulina, que injeta as doses de que precisa, juntou o sensor que mede a glicose, ambos já comparticipados pelo Estado. Também ela participa na campanha da AJDP #garradoacucar e #somosoquequeremosser, para mostrar que os jovens diabéticos podem obviamente praticar desporto, no caso de Flávia com sucesso internacional: é campeã europeia de patinagem artística na vertente de pares de dança. "O desporto é, sem dúvida, uma excelente forma de controlar a diabetes e não algo que seja prejudicial para todas as pessoas que vivem com diabetes. No entanto, ainda existem muitos profissionais, como professores de educação física, que privam as crianças de realizar as aulas por acharem que não é saudável", aponta Paula Klose, de 37 anos e que vive com diabetes tipo 1 há 24.
São relatos que reforçam a necessidade de formação nesta área, sublinha ao DN o presidente da Associação Protetora dos Diabéticos de Portugal. "Podemos dizer que as escolas não estão numa situação de recusa mas de insegurança. Mas o que se percebe de facto é que há uma grande dificuldade em perceber o que é a diabetes, o facto de estas crianças lidarem com objetos injetáveis e com sangue levanta confusão dentro das escolas. Muitas vezes recusam-se a ver os níveis de glicemia ou aplicar a insulina porque não se sentem preparadas. Nesses casos tentamos persuadir as escolas. Fazemos formações nas escolas e creches, os professores vão à nossa associação".
Durante anos, a APDP teve o apoio da Direção-Geral da Saúde nesta missão e José Manuel Boavida desafia agora a Direção-Geral da Saúde a retomar o programa de formação nas escolas sobre a diabetes. "O programa da DGS poderia ajudar muito se equipas de profissionais pudessem ir às escolas desmitificar toda a complexidade do tratamento", porque "é muito mais uma questão de dar confiança aos professores e às escolas do que qualquer outra situação, não são precisos apoios especiais".
Filinto Lima, presidente da Associação Nacional de Diretores de Agrupamentos e Escolas Públicas e diretor do agrupamento de escolas Dr. Costa Matos, em Vila Nova de Gaia, garante que isso já é o que acontece em muitos sítios e ilustra com o seu próprio caso. "Na nossa escola temos miúdos com a doença e uma enfermeira vem todos os anos letivos fazer ações de formação, informar como se deve agir em caso de crise. Portanto, não só se aceitam essas crianças como se sensibiliza a comunidade para a doença".
Começou quando ainda não tínhamos sequer chegado a 1960, com umas seringas para aplicação da insulina que eram fervidas ou passadas por álcool para serem reutilizadas; passou pelas análises à urina para avaliar o nível de glicémia, "sempre muito falíveis"; até chegar aos famosos testes através da picada no dedo e aos mais recentes sensores - "uma maravilha". Raúl Teodoro é um testemunho vivo das várias eras no controlo da diabetes. Dos seus 83 anos, 60 foram passados com uma doença que convive sempre com a falta de informação. Um tempo verbal que ainda não pode ser escrito no passado e que o levou a juntar-se à campanha da AJDP, para provar que a doença nunca foi um obstáculo intransponível. Nem mesmo quando o obscurantismo era ele próprio uma enorme barreira.
Nascido no distrito de Santarém, Raúl descobriu que tinha a doença em 1956, acabado de sair da tropa, onde já tinha percebido que alguma coisa não estava bem. "Entrei na tropa com 70 quilos, saí de de lá com pouco mais de 30. Era na altura em que já havia mobilização de topas para a Índia e os meus pais tiveram de pagar para eu não ir, porque acharam que eu estava demasiado fraco". Queixas no estômago levaram-no ao médico, que lhe passou exames. Os níveis de açúcar nas análises não deixaram margem para dúvidas, tinha diabetes. "Na altura nem os médicos sabiam bem como lidar com a doença. Andei dois anos a tomar comprimidos para a doença, porque o médico achava que podia ter diabetes tipo 2. Não me fizeram nada. Acabei no Hospital de Santa Maria, onde passei 90 dias até conseguirem acertar com a insulina indicada para mim".
A doença também lhe trouxe "muitos problemas", mas não o impediu de ter uma vida normal, mesmo quando andava em viagem por outros países para comprar e vender bebidas alcoólicas e tinha de parar de duas em duas horas para fazer a análise da glicemia. E nem sequer o levou a dispensar o seu copo de vinho, que continua a beber. Muito, quase tudo, mudou desde que descobriu que tinha a doença. Agora já nem precisa de picar o dedo para medir a glicemia, "os novos sensores são uma maravilha, dão logo os resultados".
Há precisamente um ano, o Infarmed anunciou que o Estado passaria a comparticipar em 85% o dispositivo médico FreeStyle Libre, um medidor de glicose que evita as picadas diárias. O acordo estabelecido com a empresa Abbott previa o tratamento de cerca de 15 mil diabéticos tipo I em 2018 e de acordo com a Autoridade Nacional do Medicamento, todas as crianças com mais de quatro anos seriam beneficiadas. O dispositivo tem um custo inicial de aproximadamente 170 euros e mensal de 120 e "garante um maior controlo das hipoglicémias (baixas de açúcar no sangue) e pode disponibilizar uma imagem da glicemia do doente correspondente ao período de 24 horas". Há um sensor que é aplicado "na parte posterior do braço e armazena os dados de glicose continuamente durante até 14 dias".
Um sensor que já foi notícia até no mundo da alta política internacional. No último verão, um sensor branco no braço da primeira-ministra britânica durante um jantar com Donald Trump motivou a curiosidade dos jornalistas, que perceberam depois que se tratava de um medidor de glicemia. Theresa May foi diagnosticada com diabetes tipo 1 em 2013, mas também ela passou por um erro de avaliação, comum em doentes adultos. Inicialmente, foi-lhe apontada uma diabetes tipo 2, diagnóstico que foi corrigido depois de passar cerca de um ano a tomar medicação que não produzia efeito.
Além dos medidores de glicemia, existem também as bombas de insulina, aparelhos eletrónicos que são programados pelo médico para administrar micro-doses de insulina diretamente para o organismo. O plano da Direção-Geral de Saúde prevê que todas as crianças e jovens com diabetes tipo I tenham acesso a estes aparelhos até ao final do próximo ano.
Tipo 1
A diabetes tipo 1 é uma doença crónica, que se desenvolve quando o pâncreas para de produzir a insulina de que o corpo necessita e, consequentemente, os níveis de açúcar no sangue sobem.
Tipo 2
A diabetes tipo 2, mais predominante, é caracterizada pela resistência à insulina e é provocada essencialmente por hábitos alimentares pouco saudáveis, sedentarismo e hereditariedade, entre outros fatores
Mais de um milhão de doentes
Segundo o Relatório "Diabetes: Factos e Números" de 2015 do Observatório Nacional da Diabetes, estima-se 13% dos portugueses (1,3 milhões) têm diabetes, embora quase metade dos casos não estejam diagnosticados. A Diabetes tipo 1 afetava, em 2015, 3327 crianças e jovens até os 19 anos, manifestando uma ligeira tendência de crescimento desde 2008.