Recuperar a memória enquanto chove lá fora

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Em The Memory of Water (1996), a inglesa Shelagh Stephenson trabalha uma ideia estranha: tornar em comédia o reencontro de três irmãs, na véspera do funeral da mãe. A expressão "memória da água" surge na discussão que Maria, a filha do meio, trava com o amante, um médico tornado famoso pela TV. Neurocirurgiã, confronta-se com um caso bicudo de amnésia. E alvitra se a memória humana reagirá como a da água, que se "lembra" dum princípio activo, mesmo quando desapareceu a sua última molécula.

A citação, no título, da estapafúrdia tese de Jacques Benveniste cria um motivo fluido que deita âncora no protagonismo de Maria, a personagem mais escorregadia, cujo empenho profissional lhe liquefez os afectos (o amante, casado, refugia-se nas maleitas da mulher para fugir do compromisso); no tempo e espaço da acção (um forte aguaceiro isola as irmãs no decadente quarto da mãe, numa casa ameaçada pelo mar); e nas memórias que ali repescam, evaporada a "molécula" que as marcara.

Nesta produção da Prati, José Martins quis ser fiel ao naturalismo bizarro de Stephenson. O cenário (Catarina Amaro) sujeita os objectos reais - cama, mesa-de-cabeceira, cadeira, roupeiro, toucador e enormes janelas laterais, contra as quais chove continuamente - à explosão cromática da comédia e a um vincado traço expressionista (a pesada parede, vermelha e fendida, que restringe a cena; o caixão, mal disfarçado em maple; a iluminação que isola, à boca de cena, o cavalo de balouço, reminiscência de infâncias por viver, e a cadeira, lugar solitário de desabafo).

Onde pára, então, a comédia? Eis uma questão que Stephenson resolveu mal, alternando dolorosas análises psicológicas com explosões, quase histéricas, duma farsa desajustada e superficial. O encenador vê-se, pois, em apuros ao tentar definir um registo verosímil para as personagens. E se Manuela Couto encontra um tom hilariantemente justo para Teresa, a sua dona de casa desesperada e vegetariana militante, a frustrada Maria (São José Correia) e a inconsequente Catarina (Dalila Carmo) sofrem com os improváveis solavancos do confronto entre as suas antagónicas recordações e o (já irreparável) esmagamento materno. Esta dificuldade do encenador é mais notória no desaproveitamento dramatúrgico das personagens que, apenas esboçadas por Stephenson, se tornam aqui irrelevantes: o fantasma da mãe (Maria José Paschoal), o submisso marido de Teresa (Joaquim Horta) e o amante de Maria (Pedro Lima, em substituição temporária de Filipe Ferrer).

De quarta a domingo, às 21.30 (marcações: 217 110 891)

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