Recorde de faturação nos grupos privados de saúde

Dois maiores grupos já valem, em conjunto, mais de mil milhões de euros. SNS enviou mais doentes para serem operados no privado em 2017
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Portugal já tem mais hospitais privados do que públicos. Foi o Instituto Nacional de Estatística a assinalar o facto histórico: em 2016, dos 225 hospitais do país, 114 eram particulares. O peso é maior nas grandes cidades do que no interior, claro. Mas nem tudo se resume a números e nesta questão a pergunta que tem de se colocar é: qual é, de facto, em 2018 o peso das unidades privadas na saúde dos portugueses? Grande e cada vez maior, parece ser a resposta.

Os resultados financeiros dos principais grupos de saúde no ano passado apontam para um recorde de faturação - com mais consultas e cirurgias, maior número de camas e aumentos de pessoal. Cresceram também os serviços realizados por convenção, a pedido do Serviço Nacional de Saúde.

Vamos a factos: só os dois maiores grupos privados de saúde valeram no ano passado, em conjunto, 1,1 mil milhões de euros em proveitos operacionais. 637 milhões a José de Mello Saúde (mais 8,7% em relação a 2016), 484 milhões de euros a Luz Saúde, mais 6,7% do que no ano anterior. Os grupos Lusíadas e Trofa Saúde não se mostraram disponíveis para enviar dados ao DN, mas tendo em conta um estudo de Augusto Mateus, do ano passado, com resultados de 2014, terão já, em conjunto, um volume de negócios superior a 300 milhões de euros.

Estão ainda em andamento investimentos de 500 milhões de euros em novos hospitais privados, e os primeiros nos Açores e na Madeira. Muito deste investimento é em tecnologia, segundo o presidente da Associação Portuguesa de Hospitalização Privada, Óscar Gaspar. E essa será uma das razões do crescimento dos serviços privados de saúde. Aliás, este crescimento não é exclusivamente português, segundo ele. "Decorre da vontade das pessoas de fugirem às listas de espera" e de terem acesso a essas novas técnicas. No futuro, prevê, é possível que haja o mesmo número de camas públicas e particulares, rácio que garante já existir em Lisboa.

A verdade é que não é só a opção dos utentes que justifica o crescimento do privado. Há também a ligação dos operadores privados com os subsistemas de saúde e com as seguradoras, a cada vez maior mobilidade dos profissionais de saúde entre público e privado, a contratualização dos particulares pelo Estado. Estes são, pelo menos, outros fatores destacados no estudo de Augusto Mateus para o Millennium BCP.

Peso dos convencionados subiu

O número de vales de cirurgia emitidos pelo SNS para que essas operações sejam feitas no privado aumentou 76% em 2017, segundo dados recentemente divulgados pelo Relatório sobre o Acesso a Cuidados de Saúde. Esses dados ajudam a medir a importância que o setor privado vem ganhando. E é interessante que enquanto os hospitais públicos, incluindo PPP, aumentaram o número de cirurgias realizadas em apenas 2%, nos hospitais convencionados elas cresceram 52%. Passaram de pouco mais de 16 mil cirurgias para perto de 25 mil. Sinal positivo, de que há mais acesso, ou negativo, sintoma de que o SNS não consegue responder a tempo a quem dele precisa?

"Vejo o aumento das cirurgias, em geral, pelo prisma positivo. Demonstra uma maior capacidade de resposta do sistema de saúde, na sua globalidade", argumenta Salvador de Mello, presidente do conselho de administração da José de Mello Saúde. Para o SNS, o ponto principal parece ser o de resolver o problema das pessoas, seja no setor público ou no convencionado - segundo fontes ouvidas pelo DN. As cirurgias realizadas no privado são 25 mil, mas são apenas 4% do contexto global.

Conversa bem diferente nos meios de diagnóstico, em que só nas análises clínicas e na radiologia há mais de 500 prestadores privados com protocolos com o Estado. No ano passado, o SNS gastou mais de 450 milhões de euros nesta área, o valor mais alto desde 2012. A dependência é muito maior nos meios de diagnóstico, principalmente nos cuidados de saúde primários, segundo as mesmas fontes - sobretudo devido à maior proximidade da população.

O economista Ricardo Paes Mamede contra-argumenta que "há espaço para reduzir o recurso ao setor privado sem comprometer a resposta pública". E lembra as melhorias de produção registadas quando o Estado decidiu investir não só na realização de exames dentro do SNS, mas também nas consultas orais em centros de saúde, uma área que praticamente não tinha resposta pública.

A tabela de preços do SNS é aplicada de igual forma para os hospitais convencionados que fazem parte do Sistema Integrado de Gestão de Inscritos para Cirurgia (SIGIC). E há mesmo casos em que, pela diferença de encargos com as respetivas estruturas, uma intervenção nos convencionados fica mais barata do que no SNS, como acontece com as cataratas (em que o preço no SIGIC é cerca de 500 euros mais baixo do que no SNS) e as varizes.

O peso do Estado no financiamento

Como em tudo, também aqui há o reverso da medalha: a dependência dos privados do financiamento do Estado, em especial via ADSE. Alexandre Lourenço, presidente da Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares, diz taxativamente que "a ADSE continua a sustentar o crescimento do setor privado de saúde".

Os dados: entre 2010 e 2016, o financiamento da rede convencionada da ADSE aumentou de 190,2 para 405,3 milhões de euros (112%). Num artigo de opinião publicado no jornal Hospital Público, o presidente da APAH já tinha afirmado que o Estado, ao financiar entidades privadas, promove também a disputa pelos recursos humanos do SNS. "Estando [os hospitais públicos] limitados na sua capacidade gestionária, vamos assistindo passivamente à perda de recursos humanos e de doentes, enfraquecendo a capacidade e a qualidade de resposta do público."

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