Reconciliar o SNS com as pessoas

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Os últimos dois anos de pandemia são apontados como uma espécie de pausa nas sociedades, aos mais diferentes níveis, da economia à saúde. Esperamos todos encontrar um novo normal, caso não seja possível recuperar o normal de 2019. O problema é que o mundo mudou e não será mais possível regressar a 2019 e fazer um simples play, e o novo normal será muito exigente no que diz respeito aos sistemas de saúde, em particular ao Serviço Nacional de Saúde. Entrámos na pandemia com vários problemas estruturais e conjunturais, com uma saúde subfinanciada, sem estratégia e visão, e sem uma liderança forte - onde se inclui tanto o conhecimento político e técnico do setor como a capacidade de ouvir e respeitar o capital humano.

Dissemos, com esperança e sinceridade, que iria ficar tudo bem, mesmo sabendo que seria impossível. Se é verdade que houve ganhos com a pandemia, como a consagração da ciência e da investigação como cruciais para o avanço da medicina e como resposta aos grandes problemas da humanidade, também temos hoje pessoas mais pobres, mais frágeis física e psicologicamente, e um mundo mais desigual, muito longe do equilíbrio que todos pretendemos. Basta ver o paradoxo de, ainda sem poder declarar o fim da pandemia, estarmos já perante uma guerra incompreensivelmente declarada pelo presidente russo, Vladimir Putin, e onde tememos, precisamente, o uso da ciência pervertido, neste caso ao serviço da destruição das pessoas e do mundo.

A saúde é basilar para as sociedades e já foi demasiado afetada. Deve ser preservada de qualquer guerra militar, provocada por um vírus, ou outra. É fundamental que estejamos unidos neste desígnio. Regressando à realidade portuguesa - se é que hoje é possível pensarmos num mundo arrumado em fronteiras - vivemos hoje um Serviço Nacional de Saúde muitas vezes sem armas nem generais, paralisado desde 2019, altura em que já estava muito doente. Os médicos e outros profissionais de saúde são líderes autoproclamados, perante um silêncio ensurdecedor da tutela.

O futuro do SNS passa por sermos capazes de transformar um sistema de saúde com 42 anos, que nos deu muito, mas que não pode continuar a funcionar da mesma forma. Hoje o mundo é global. O mercado de trabalho é aberto, tanto a nível europeu como nacional. Ignorar isto é continuar a perder médicos e outros profissionais do sistema público, numa tendência que começou a conta gotas, mas que hoje é já de caudal significativo e difícil reverter. As carreiras médicas estão congeladas e obsoletas, as condições de trabalho não acompanham o desenvolvimento tecnológico nem a imprescindível conjugação da vida profissional com a vida familiar. Continuar a negar isso e a manter as carreiras longe da prioridade do Governo para a próxima legislatura é deixar de investir no SNS por inércia, até porque acabamos a ter uma fatura elevada através de empresas prestadoras de serviços médicos que não nos garantem a mesma qualidade e continuidade de cuidados. Não é só o que fazemos que condiciona os hospitais e centros de saúde. O que fica por fazer é tão ou mais prejudicial.

O problema do subfinanciamento é antigo e crítico. O SNS precisa de mais orçamento. Não vale a pena dourar o discurso, passando-se a mensagem de que é tudo uma questão de organização. Mas reconhecemos que colocar dinheiro, por si só, nos problemas também não resolverá tudo. Precisamos de melhores políticos, líderes e gestores. A nível académico e curricular. Mas sobretudo precisamos de boas pessoas nestes lugares, pois a capacidade de ir ao terreno, de saber ouvir, de reconhecer que um determinado caminho é errado, e até de pedir desculpa, é sem dúvida um exclusivo dos bons seres humanos. Como diria Hemingway, que já noutras ocasiões citei, quem está nas trincheiras a nosso lado importa muito mais do que a própria guerra.

O companheirismo a que assistimos entre pares, e entre profissões, para proteger e cuidar os nossos doentes nestes dois anos, foi o que de mais genuinamente belo encontrámos no meio da tempestade, das más políticas, da crise de valores, do desrespeito, da propaganda e da mentira. A ciência, a medicina e a liderança clínica foram a nossa força e o nosso Norte, mas não chegam. Precisamos de um SNS reconciliado com as pessoas. E esta reconciliação só é possível se o futuro ministro da saúde tiver a humildade e a capacidade de estar perto e ouvir os profissionais e os seus representantes, que todos os dias fazem acontecer o SNS e salvam milhares de vidas. E atuar em conformidade com o diagnóstico real do que está a acontecer e do que é necessário. Caso contrário, teremos mais do mesmo, manteremos os estigmas que arrasam a evolução que a saúde exige com urgência, e os médicos e outros profissionais continuarão a seguir outros caminhos, deixando o SNS. E o Primeiro-Ministro perde a oportunidade de deixar uma marca na Saúde para 2040: um SNS transformado, capaz de ser competitivo e responder às necessidades dos portugueses no presente e no futuro. O futuro constrói-se hoje, não amanhã.

O país, os portugueses, querem e precisam de um plano Marshall para a saúde, focado em resolver os problemas das pessoas, que aposte na promoção da saúde e prevenção da doença e que as convoque pró-ativamente em vez de esperar que fiquem gravemente doentes. Em várias sondagens recentes, os cidadãos reclamam mais profissionais e mais acesso à saúde. Depois de tantos anos com listas de espera incomportáveis, e de dois anos inimagináveis de pandemia, o foco deve ser precisamente abrir as portas da saúde, ter uma visão global do país. Isso implica atribuir médico de família a todos os portugueses, fazendo parcerias e revendo as carreiras. Mas não chega. Nos hospitais é preciso que exista uma verdadeira autonomia de contratação e gestão, modelos de contratação inovadores, que permitam rapidamente contratar os jovens especialistas necessários para melhor responder às necessidades dos cidadãos. Precisamos também de locais de trabalho seguros, em que as pessoas não tenham medo de ser agredidas ou insultadas enquanto contribuem para salvar vidas. A dignidade é um valor sem preço e que nos leva a perder muitos dos nossos melhores.

A Ordem dos Médicos está disponível para este diálogo, como sempre esteve. Mesmo quando não nos querem ouvir, não abdicamos de cumprir o desígnio que nos está atribuído pela Constituição da República Portuguesa e na lei que a cria, de proteger os direitos dos nossos doentes. O enfraquecimento da democracia não pode resultar no silenciamento dos mais fracos e vulneráveis. Seremos sempre a sua voz.


Bastonário da Ordem dos Médicos

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