'Read my lips'. Vou mentir-vos com quantos dentes tenho
Read my lips, no new taxes, prometeu a soletrar George H. Bush, candidato a presidente americano, em 1988, e que depois de eleito mandou às malvas a sua promessa de não aumentar os impostos.
Há seis anos, a 1 de abril de 2011, já em período de pré-campanha eleitoral, foi o presidente do PSD, Pedro Passos Coelho, que não precisou de dizer que lhe lessem os lábios ao recusar que se fosse eleito primeiro-ministro haveria cortes - e houve, menos de três meses depois. A mentira também é um instrumento usado na política, com os vários protagonistas a atacarem-se mutuamente de "mentirem" (ou, eufemisticamente, dizerem "inverdades").
Passos e o "disparate" dos cortes
O líder social-democrata estava de visita a uma escola secundária de Vila Franca de Xira, quando foi interpelado por uma aluna que o questionou sobre cortes nos subsídios de férias. Passos Coelho não poupou nas palavras: "Já ouvi o primeiro-ministro [então José Sócrates] dizer, infelizmente, que o PSD quer acabar com muitas coisas e acabar com o 13.º mês, mas nós nunca falámos disso e isso é um disparate, isso é um disparate."
Estava-se a 1 de abril de 2011, mas dias antes, a 24 de março, o mesmo Passos antecipava que, se aumentasse a fiscalidade, canalizaria "sobre os impostos para o consumo e não sobre os impostos do rendimento das pessoas". A 30 de junho de 2011, já eleito primeiro-ministro, Passos Coelho desmentia as suas próprias palavras.
Verdade seja dita: estas mentiras são hoje menos toleradas. "Quando se fala de verdade política, temos de separar duas realidades", apontou ao DN o politólogo António Costa Pinto. "Por um lado, nos últimos anos, há uma exigência cada vez maior de que a elite política não faça promessas eleitorais - para usar uma expressão comum na vida política portuguesa - acima das suas possibilidades. Por outro lado também, a perceção e a estrutura da opinião do eleitorado e da opinião pública, é muito moldada por valores e pela ideologia, por isso, o conceito de verdade é percecionada de forma diferenciada" entre os eleitores e os partidos e ideologias com que se identificam.
Sócrates e uma sucessão de casos
O licenciamento do Freeport, o caso da licenciatura ou a tentativa de negócio PT/TVI. Há uma sucessão de casos que se colam a José Sócrates (primeiro-ministro de 2005 a 2011) como uma lapa, o que lhe valeu mesmo a alcunha nos meios da oposição de "pinócrates". No entanto, acossado com vários processos que se iam conhecendo, o então líder socialista resistiu ao teste eleitoral da recandidatura em 2009. "As construções ideológicas determinam, muitas vezes, que a mentira não seja excessivamente penalizada."
Há também uma "associação da verdade com a conspiração", notou Costa Pinto, a partir de Nova Iorque, onde se encontra para umas conferências sobre o populismo na política. "A classe política nas sociedades democráticas, com a grande mediatização e a pessoalização, vive uma grande tendência para as teorias da conspiração, que são depois fatores de legitimidade" (como fez o candidato francês François Fillon, que acusou o Eliseu, a Presidência francesa, de estar por trás dos ataques à sua candidatura). E, "muitas vezes, no espaço público, a teoria da conspiração como que substitui a dimensão da verdade na política", afirmou o politólogo.
Cavaco e omissões
Também Cavaco Silva tropeçou na verdade, ou pelo menos em meias-verdades, quando ainda Presidente da República, em janeiro de 2011, se lamentou por não ganhar para pagar as despesas, omitindo que recebia uma mais de 10 mil euros brutos como aposentado.
Costa Pinto remeteu este episódio para "outro fator muito importante", que tem afetado as democracias ocidentais nos últimos 30 anos (embora seja mais recente no caso português): "O efeito de personalização e a menor identidade ideológica entre o eleitor e o eleito." Como explicou o politólogo, "os partidos políticos (apesar da clivagem esquerda/direita ser importante) perderam ligações estáveis ideológicas e sociais que tinham com a sociedade civil."
Os efeitos desta perda de ligações "não só provoca uma muito maior fluidez das atitudes eleitorais da cidadania, como também o fator personalização é mais importante". Atrás dessa personalização da política vem o facto de "a confiança no líder" ser "muitas vezes tão ou mais importante como a confiança ideológica". E constata-se que são líderes com pés de barro: "Também a descoberta de contradições na política tem um impacto mais significativo."
Marcelo e a ementa inventada
É de conspirações na política que se fez a contribuição do atual Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, para este registo de mentiras na política. Em 1993, o então diretor do jornal O Independente (e mais tarde líder do CDS), Paulo Portas, revelava num talk show de Herman José uma traição antiga de Marcelo que daria origem a uma notícia falsa.
Teria havido um jantar em Belém, com o Presidente Mário Soares a jantar com constitucionalistas, que afinal não aconteceu. "Herman, era tudo mentira! Tudo mentira! Os nomes, as pessoas, o que cada um tinha dito e até a ementa", lamentou-se Portas, referindo-se à sopa fria servida no jantar que nunca aconteceu.
A vichyssoise entrava para o anedotário político, mas hoje, porventura, ficaria inscrita no universo das fake news, as notícias falsas, os factos alternativos em que é pródigo o presidente americano Donald Trump (como a inventar notícias alarmistas sobre a Suécia).
Costa Pinto defendeu ao DN que "a teoria dos factos alternativos, ao ser explícita, provocou um grande impacto", mas, "na realidade, na vida política, por trás dessa vida e sem falar nessa palavra recente e quase proibida, [esta teoria] faz parte do dia a dia dos partidos políticos e da democracia". E completou: "São construções, que mais tarde são conhecidas, mas já não têm impacto."
As mentiras no Parlamento
Se olharmos para a vida política e parlamentar mais recente, o verbo "mentir" instalou-se nos corredores de São Bento e assentou praça nos plenários da Assembleia da República. A presidente do CDS, Assunção Cristas, acusou o primeiro-ministro, António Costa, de "mentir" no caso do acordo com os parceiros sociais sobre a taxa social única e que não tinha condições para continuar no cargo.
São estes exemplos, repetem os comentadores, que levam ao descrédito dos cidadãos na política, que acham que todos os políticos mentem. "Os setores da sociedade civil que têm maior desafeção pela classe política expressam a ideia de que eles são todos iguais", notou o investigador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Que identifica mais dois tipos de eleitores numa sociedade democrática: "Aqueles que se identificam com uma personalidade e o seu partido tende a justificar a mentira"; e aqueles que têm uma "maior exigência no que toca às promessas eleitorais".
Como sentenciou o antigo primeiro-ministro britânico, Winston Churchill, "uma mentira dá uma volta inteira ao mundo antes mesmo de a verdade ter oportunidade de se vestir".