Razões de uma razão (XX)

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"Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade." É deste jeito, com esta densa simplicidade, que começa a parte dispositiva da Declaração Universal dos Direitos do Homem, adotada e proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, no dia 10 de dezembro de 1948. Praticamente sete décadas depois, o peso que se sente em cada uma destas palavras não pode deixar de ressoar na nossa consciência individual e coletiva. Sintetizam, de um jeito forte, tudo aquilo que somos. Tudo aquilo que nos une. Palavras que dão expressão ao desígnio pelo qual, no passado e no presente, homens e mulheres se bateram - e ainda se batem - e que, por essa razão e apenas por essa razão, muitos pagaram e pagam um alto preço. Palavras que também são, em si mesmas, razões de uma razão.

Não obstante os ideais de igualdade, de justiça e de liberdade se encontrarem já presentes, de um certo modo, nos mais longínquos capítulos da história, foram necessários séculos, milénios, de evolução do pensamento humano nos domínios da filosofia, da cultura, da política e da ciência, para que a humanidade lograsse alcançar o patamar mínimo de reconhecimento da dignidade da pessoa, compatível com a verdadeira e plena dimensão do seu "ser". Com avanços e recuos, o reconhecimento dos direitos individuais começa a ganhar consistência sob os auspícios do pensamento iluminista, inspirador de uma nova cultura que ganha expressão concreta, em uma dimensão política e jurídica, na Bill of Rights britânica e norte-americana e na Déclaration des Droits de l"Homme et du Citoyen, nascidas de processos revolucionários assentes no reconhecimento da liberdade individual.

Mas se é certo que o gradual reconhecimento dos direitos humanos, de que a Declaração Universal é, sem espaço para dúvida, um dos seus marcos mais relevantes, não é menos verdade que são muitos os acontecimentos, são inúmeros os episódios em que todos nós - comunidade nacional e internacional - estivemos aquém do que foi proclamado há quase sete décadas. Os conflitos que reclamaram - e que reclamam - milhões de vidas; as situações de pobreza que atingem partes muito significativas da população mundial, sem conhecer fronteiras, idade ou género; a discriminação que todos os dias homens e mulheres sentem apenas porque o são, ou porque a cor da sua pele é diferente, porque o seu credo é diverso ou porque amam quem livremente escolheram amar; a perseguição de que pessoas com coragem são alvo, apenas e tão-só porque dizem ou escrevem o que pensam, são feridas profundas que a humanidade e os sistemas nacionais e internacionais de promoção e de defesa dos direitos humanos não lograram ainda erradicar.

Todavia, é justamente por isso que nós, instituições de defesa dos direitos humanos, existimos. Mais, é por isso que nós, instituições de defesa dos direitos humanos, persistimos. E é por essa razão que, no seio de uma relação institucional própria de um órgão do Estado, procuro, em condições de total liberdade e independência, persuadir os poderes públicos nacionais e os agentes do sistema internacional de direitos humanos para que sejam criadas um conjunto de políticas, de normas e de práticas que sejam mais fortes, mais eficazes e mais consistentes na defesa dos direitos fundamentais dos cidadãos.

Tenho partilhado, ao longo destes escritos, as diversas dimensões da missão do Provedor de Justiça. A intensa atividade de apreciação de todas - sublinho de todas - as queixas e lamentos apresentados pelos cidadãos. As responsabilidades assumidas enquanto Instituição Nacional de Direitos Humanos que exigem constante trabalho de avaliação da realidade, no sentido de desenvolver iniciativas de promoção e de defesa desses direitos. E a mais recente designação como Mecanismo Nacional de Prevenção que implica a realização de visitas a locais de detenção dispersos por todo o território nacional. São expressões muito reais e concretas da confiança do Estado e dos cidadãos na robustez institucional do Provedor de Justiça ao longo do tempo, mas são, também, expressão do reforço do quadro político-jurídico de promoção e de defesa dos direitos humanos.

Esta circunstância tem-me permitido testemunhar, ao longo do meu mandato, que, no nosso país e em outras partes do mundo, nas instituições do Estado, mas também nas organizações da comunidade, há um vastíssimo conjunto de homens e de mulheres que dedicam as suas vidas à defesa da justiça concreta, da igualdade efetiva, da liberdade individual e da prosperidade dos povos. Missão que prosseguem não com um sentido populista ou caritativo, mas antes, tendo bem presente o genuíno sentido dos princípios e dos valores que se encontram inscritos na Declaração Universal dos Direitos do Homem e que a nossa Constituição democrática soube receber de forma plena, demonstrando a sua abertura e vitalidade.

Vivemos a incerteza do que está para vir. Na Europa e no mundo sentimos os obstáculos e as dificuldades do dia-a-dia dos nossos concidadãos, mas não soçobramos neste mar agitado. Não desistimos.

"Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade." É bom não esquecer.

Provedor de Justiça

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