Raúl Hestnes Ferreira: humano, moderno, curioso
"É uma figura de referência na arquitetura portuguesa, o arquiteto Hestnes Ferreira tem um trabalho notável". Helena Roseta, arquiteta e presidente da Assembleia Municipal de Lisboa, destaca a obra e o homem. Raúl Hestnes Ferreira morreu em Lisboa, no domingo, aos 86 anos. É autor de uma extensa obra cujo ponto final foi a Biblioteca de Marvila, inaugurada em 2016 - mas pensada durante décadas - e um dos pontos altos foi o ISCTE, prémio Valmor em 2002.
Filho do escritor José Gomes Ferreira (em 1974 projetou a escola de Benfica que, mais tarde, receberia o nome do pai), estudou na Escola Superior de Belas Artes de Lisboa e de Porto. Saiu de Portugal para estudar na Finlândia, lembra Ana Tostões, arquiteta e investigadora. "O Raúl Hestnes" foi dos primeiros arquitetos portugueses a viajar muito. Ele esteve nos países nórdicos (a mãe era norueguesa) e trabalhou com arquitetos finlandeses e é "o primeiro português a ir trabalhar e estudar para os Estados Unidos". Estuda na Universidade de Yale (1962) e na Universidade de Pensilvânia, onde conclui o master em Arquitetura (1963). Em Filadélfia conhece Louis Khan (1901-1974) arquiteto nascido na Estónia, naturalizado americano. "Há logo uma relação fortíssima entre os dois, entre aluno e professor, e ele vai continuar a trabalhar com Louis Khan. Esse legado de Louis Khan é na minha opinião uma revisitação do moderno. A arquitetura moderna encarada como símbolo e como monumento vai ser desenvolvida em Portugal pelo Raúl Hestnes Ferreira de uma maneira muito única", acentua.
O bairro Fonsecas e Calçada, em Lisboa, é um dos marcos da sua obra. "Foi uma cooperativa, que agora está recuperado e é um bairro de extraordinária qualidade, feito em colaboração com os moradores. É uma obra notável", diz Helena Roseta, sublinhando o caráter humano do arquiteto. João Afonso também o acentua. Alude à Casa de Albarraque, que Hestnes Ferreira fez para o pai entre 1959 e 1961, no início de carreira. "É a sensação de que estamos lá porque fazemos parte daquilo, é um espaço para nós", disse ao DN.Olhando para as obras, Ana Tostões destaca também a Casa da Cultura de Beja. João Afonso, chama a atenção para o ISCTE, na Cidade Universitária, em Lisboa. "Desde o edifício sede, passando para a [Ala]Autónoma e depois o edifício 3 é quase como um corpo em crescimento que vai mudando com os tempos", diz. "Muitas vezes os projetos dele demoram uma série de anos a ser desenvolvidos e apesar de haver uma continuidade no projeto ele vai-se adaptando à mudança dos tempos", sublinha.
Isso mesmo aconteceu na Biblioteca municipal de Marvila, a sua última grande obra em Lisboa. "Ele tenta perceber um mundo que conheceu nos anos 60 quando fez um dos planos de desenvolvimento da cidade de Lisboa, da Quinta dos Alfinetes, e 40 anos depois volta lá e cria um polo cultural, que é um espaço de desenvolvimento comunitário, local", diz João Afonso.
O velório de Hestnes Ferreira decorre amanhã na Igreja da Graça. A cremação será às 12.00 de quinta-feira no Alto de São João, em Lisboa.