Rastreio = + Vida testa doenças sexuais em transexuais profissionais do sexo
Larissa, Doriani e Márcia são transexuais e profissionais do sexo, vidas que reconhecem ter riscos, nomeadamente no plano da saúde, apesar de garantirem não ceder a um dos desejos dos clientes: o de não usarem preservativo. Mas sentem-se mais seguras desde que são acompanhadas pela equipa da Fundação Portuguesa "A comunidade contra a sida", através do projeto: Rastreio =+Vida. Estão no programa de tratamento e/ou prevenção do VIH.
Larissa tem 34 anos, veio há quatro de São Paulo. Tem morada no Porto, onde é desenvolvido o projeto da Fundação, mas circula por Portugal e pelo estrangeiro, como todas as trans do ramo. Lisboa, Braga, Faro, também cidades de países como França, Espanha e Itália, onde encontram mais clientela.
"Vim para Portugal pelo sonho, agora não tanto pelo sonho, mas pela segurança e qualidade de vida. Viajo por todo o lado, há apartamentos específicos onde alugamos quartos e que tanto funcionam para mulheres trans como cis [que se identificam com o sexo de nascença]. A grande maioria das meninas que estão em Portugal já fazia trabalho sexual no Brasil, onde há mais clientes. Mas é onde são mortos mais trans, depois do México", explica Larissa.
Teve o primeiro contacto com a Fundação há dois anos. Uma mulher ligou-lhe: pertencia à equipa do projeto Rastreio =+Vida, liderada pelo enfermeiro André Silva. Trabalha no Serviço de Doenças Infecciosas do Hospital de Santo António, no Porto, e é voluntário da Fundação. "Num congresso sobre estas temáticas, uma pessoa da assistência disse que pertencia a uma franja da população que era sistematicamente esquecida, os transexuais. É a partir daí que surge este projeto. Mostra que esta população existe e que tem de ser rastreada, acompanhada e, caso haja um problema de saúde, intervimos", conta André Silva. É a forma de combater a progressão da sida nesta comunidade.
O projeto é cofinanciado pela Direção-Geral de Saúde e pela fundação "A comunidade contra a sida". "Trabalhamos sempre na vertente da qualidade de vida do utente em vários aspetos: médico, suporte social e apoio psicológico", sublinha Filomena Aguiar, presidente da Fundação.
Contactam as transexuais através de sites como Classificados X, Oje, Vip Trans X , ou são encaminhadas por alguém que já é acompanhado pela Fundação. Levam preservativos e lubrificantes. Fazem testes de doenças sexualmente transmissíveis, nomeadamente VIH, sífilis, hepatite B e C , e promovem o apoio psicológico.
Larissa soube nesses rastreios que era seropositiva. Não faz ideia quando terá sido infetada, suspeita que tenha sido por um "parceiro fixo". "Aos clientes, não dou abertura para isso", assegura. E recorda: "Fiquei assustada, é muito difícil receber essa notícia, ainda bem que fiz o rastreio. Descobri numa fase inicial da doença. Enviaram-me para o Hospital de Santo António para fazer o tratamento com medicamentos antirretrovirais, não há o risco de infetar outro". Ou seja, a infeção não evoluiu para o estado de sida, quando o sistema imunitário está de tal forma fragilizado que não se consegue proteger de doenças oportunistas.
"As amostras vão para o laboratório e em caso de se confirmar a infeção as pessoas são encaminhadas para o hospital e passam a ser seguidas por nós. Iniciam a terapêutica antirretroviral que reduz ao mínimo possível a circulação do vírus no sangue e quando o vírus está indetetável não é transmitido", explica o enfermeiro.
"Tem sido muito importante o acompanhamento da equipa de André Silva, não só a nível da doença, mas também psicológico. Valorizo muito isso", salienta Larissa.
Feito o primeiro contacto, é estabelecida uma relação de confiança, até porque os acompanhamentos são feitos na habitação. As visitas são sazonais e à noite, num período em que deveriam estar a trabalhar. "Andamos fora de horas, descaracterizados, para não sermos identificados se nos cruzamos com alguém. Não colocamos ninguém em causa. É importante estabelecer estas relações de confiança", explica André Silva.
"As pessoas estão a abrir a porta de casa, a sua intimidade, não nos conhecem", sublinha Rita Braga, psicóloga e farmacêutica, um dos três elementos da equipa que o DN acompanhou. O terceiro é Filipa Macedo, psicóloga.
A equipa toca à porta de Doriani, 38 anos. Vive no Porto há dez, é trabalhadora do sexo desde os 19. "Quando cheguei, as pessoas eram mais fechadas, agora acho que é igual ao Brasil", diz. Não gosta muito de ir para fora de Portugal, apenas quando o trabalho o exige. O mercado está sempre a mexer. Hoje no Porto, amanhã noutra cidade portuguesa ou mesmo europeia. "Os clientes gostam de diversificar". Há outros países europeus em que os trabalhadores do sexo têm o caminho mais dificultado, como a Espanha, que não permite anúncios com teor sexual.
Doriani conheceu o projeto há três anos por uma amiga. "Vieram cá a casa, fizeram o rastreio, não tinha a infeção, propuseram que fizesse prevenção do VIH. É PrEP, que significa profilaxia/predisposição a um microrganismo, ou seja, que a pessoa em causa tem comportamentos de risco. O tratamento é para a vida e são rastreadas de três em três meses, para ver se a situação clínica se mantém estável.
No primeiro contacto, é também feito um questionário. Escrevem a primeira letra e a última do nome, aliás, até no hospital, as chamam pelas iniciais. Também porque a esmagadora maioria não alterou o género no registo civil nem fez a cirurgia para mudança de sexo.
Os técnicos tentam perceber também quem as procura, quais são as práticas sociais. Fazem um quadro sociopsicológico, até para melhor as poderem ajudar quando revelam problemas.
"São pessoas mais vulneráveis do ponto de vista psicológico. Sentem preconceito por serem imigrantes, por serem trabalhadoras do sexo, por serem trans e por causa da orientação sexual. Também nos cabe promover a sua integração", defende Filipa Macedo.
Acrescenta Rita Briga: "Há pessoas que nos procuram quando voltam ao Porto. Temos que identificar as suas necessidades. Temos muitos imigrantes que não têm documentos, que são marginalizados. Vivem um dia de cada vez."
Doriani trabalha todos os dias, entre as 09.00 e as 02:00. Recebe os clientes na sua casa - apenas uma pequeníssima percentagem das pessoas acompanhadas pela Fundação estão na via pública. "Já trabalhei na rua e até gostava, mas habituei-me ao telefone. A Internet é a principal via de divulgação do nosso trabalho", conta.
Ao longo de três anos de atividade, o projeto Rastreio =+Vida acompanha 220 transexuais, destas apenas nove portuguesas, as restantes são brasileiras. E embora a equipa esteja sediada no Porto, acaba por acompanhar quem vive em Lisboa, Faro e outras cidades, precisamente pela elevada circulação desta população. A maior parte já tem dez anos de atividade neste ramo, as brasileiras têm o ensino secundário, enquanto as portuguesas se ficam pelo básico.
Apenas três fizeram a cirurgia para se tornarem definitivamente mulheres, uma das quais portuguesa. Um órgão sexual masculino num corpo feminino é a razão da procura. "As que fizeram a operação arrependeram-se", diz Márcia.
Tem 30 anos, é natural do Rio de Janeiro e está em Portugal há cinco anos. Anuncia os seus serviços como "mensagem erótica, prostática e sensual". Uma hora custa 100 euros, o mínimo são 30 minutos, por 50, são os preços em geral,
"O fetiche do cliente é o órgão sexual masculino. Ninguém vem ao engano", afirma Larissa. Informa que 80 % dos homens que a procuram são casados e têm entre os 30 e 50 anos de idade.
A maioria (72) dos que são acompanhados permanentemente pela equipa são seropositivos e fazem tratamento com antirretrovirais. Outros 60 fazem PrEP. Significa que há uma parte considerável que não tem um acompanhamento frequente. "Temos que investir para que venham a entrar no PrEP", refere André Silva.
Doriani tem a nacionalidade portuguesa e visita praticamente todos os anos a sua cidade natal, São Paulo. Quer trabalhar mais uns anos no ramo e regressar ao Brasil com o dinheiro amealhado. Desconta há 14 anos para a segurança social, reivindica a regularização da atividade de profissional do sexo. "Todos ganhávamos e havia um maior controle. Na Suíça, Alemanha, Áustria, Holanda, as pessoas chegam ao país e vão à polícia. Depois, têm de ir a um centro de saúde e, se tiver algum problema, é medicada, caso contrário, é mandada embora", argumenta Doriani.
No entanto, salienta André Silva, "Doriani ainda é uma exceção, muitos não têm documentos". Mas, acrescenta Rita Braga, "cada vez mais, as pessoas querem ter a documentação certinha".
Márcia era massagista antes de ser profissional do sexo, e sublinha que é das poucas diplomadas. "A massagem fideliza", 80 % dos seus clientes voltam. Acrescenta o curso superior de psicologia ao currículo. "Quando vim para Portugal, era mais fácil trabalhar no ramo do sexo do que numa clínica", diz.
As três mulheres justificam a profissão com a dificuldade em encontrar emprego sendo transexuais. Mesmo na área da estética, como acontece no Brasil. " Há muitos trans a trabalhar em cabeleireiros e são preferidos pelas clientes, aqui é impossível", explica Larissa, que espera montar um cabeleireiro quando regressar ao país. Concorda Diorani: "O facto de ser transexual deixa poucas hipóteses de ter um outro emprego."
Márcia é uma mulher de ideias definidas, classifica-se muito organizada, trabalha para juntar dinheiro e montar um gabinete de estética no Porto. "Gosto de Portugal porque gosto de estar na minha casa. Financeiramente, qualquer outro país seria melhor". Trabalha de segunda a sábado, "o domingo é para mim", entre as 10:00 e as 22.30/23:00. Acaba e tem o companheiro à espera para jantar.
Contactou com a equipa da Fundação por causa da oferta de preservativos. "O primeiro o contacto foi para ter material, depois, foi por necessidade, vieram cá casa. Fiz o rastreio e apresentaram-me o projeto PrEP. Também faço terapia pontualmente, que é um serviço que deve ser enaltecido. As meninas precisavam. Acabámos por estabelecer uma relação, é muito importantes sentir este apoio".
Márcia diz que não faz tratamento hormonal, ao contrário de Doriani e Larissa. "Não sinto necessidade, mesmo que digam que não tenho peito, não é um problema para mim nem para os clientes". Também paga impostos".
A questão da segurança está sempre presente. Em geral, vivem, em prédios onde há outras trabalhadoras do sexo. Muitas portas têm câmaras do lado de fora da porta. Acabar o dia cedo, como fazem a Márcia e a Larissa, que recebe entre as 08:00 e as 24:00 é, também, uma forma de evitar pessoas indesejáveis, "como drogados e bêbados". Há sinais estabelecidos entre elas que acionam em caso de perigo. Informam sempre que alguma é atacada, por exemplo, vítima de assalto. As três mulheres não tiveram grandes sustos.
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