Rapazes de táxis

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Durante anos a fio, criaturas mal-intencionadas difundiram um estereótipo dos taxistas: rudes, mal-criados, intolerantes, não demasiado honestos, não excessivamente asseados e não muito agradáveis em geral. Entre outras coisas, os membros da classe que participaram na manifestação de segunda-feira provaram a todo o país que o estereótipo não corresponde à realidade.

De facto, a julgar pela vasta amostra, os taxistas são gente decentíssima, chefes de família que só desejam acautelar o primado da lei e a protecção do consumidor. No fundo, são heróis, quase mártires, dispostos a sacrificar um dia de trabalho a troco do bem comum. Imagine-se o inverso: quantos de nós abdicaríamos de parte apreciável do nosso salário apenas para beneficiar os taxistas? Só os que utilizarem os serviços de um deles, sobretudo dos que, sempre em prol do consumidor, fazem escala em Alverca numa "corrida" da Portela ao Marquês.

Joguetes de interesses obscuros, as televisões praticamente não dedicaram "antena" à manifestação. Se não fossem cinco ou seis canais em "directo" desde manhãzinha até à madrugada seguinte, o acontecimento teria passado despercebido, assim como a adequada indignação dos profissionais da bandeirada, que decerto justificava mais do que meras dezenas de horas de emissão. Para cúmulo, à escassa importância dada à manifestação os media acrescentaram interpretações absurdas das acções dos manifestantes, destinadas a fornecer uma péssima imagem dos mesmos. Tentarei repor a verdade e contar o que vi.

Em suma, vi uma bela lição de civismo. Vi os taxistas cercarem o aeroporto, não para transtornar o público, mas de modo a impedir a fuga de novos argelinos e contribuir voluntariamente para o combate ao terrorismo. Vi os taxistas tratarem à pedrada um carro da malévola concorrência, não para a intimidar, mas para aplicação graciosa de um restyling modernaço ao veículo. Vi os taxistas lançarem garrafas de água à polícia, não com intenções agressivas, mas a fim de refrescar os agentes da autoridade no pino do calor. Vi taxistas ajudar repórteres a passar o tempo através de saudáveis insultos e tabefes fraternos. Vi taxistas exaltarem a variedade étnica da nação ("O primeiro-ministro é monhé"). Vi taxistas oferecerem estimulantes pareceres jurídicos ("As leis são como as meninas virgens: são para ser violadas"). Vi taxistas homenagearem orientações sexuais alternativas ("Aqui é só paneleiragem"). Vi taxistas queixarem-se de discriminação. Vi que, dos dois destacados mentores espirituais dos taxistas, um se chama Florêncio e o segundo invoca constantemente uma "plantaforma", referências botânicas que atestam o carácter dócil e íntegro dessas duas alminhas. Vi, afinal, uma corporação de valentes profissionais reagir à opressão mediante berros ordeiros e pancadaria didática.

E principalmente vi Sua Excelência, o Senhor Presidente da República, considerar que "a manifestação foi pacífica" e que "o balanço global é positivo". Depois disto, fica claro que nenhum cidadão consciente voltará a entrar num automóvel da Uber. Ou deixará de reeleger o prof. Marcelo. Para a semana, os funcionários da Fosforeira vão apagar um incêndio qualquer em protesto contra a Bic.

Quinta-feira, 13 de Outubro
Jogar à sueca

Não vale a pena discutir a obra de Bob Dylan, que dentro dos padrões da tradição popular americana tem canções quase perfeitas, canções irrelevantes e canções tão fraquinhas que nem merecem a designação. Não vale a pena discutir o lugar que os textos de alguma música - raríssima, de qualquer modo - podem ocupar na história da literatura. Não vale a pena discutir o conceito de "literatura", que à semelhança de outras catalogações ligadas à criatividade também procura legitimar uma quantidade incomensurável de puro lixo. E de certeza não vale a pena discutir se Bob Dylan "justifica" o Nobel do ramo que lhe deram, discussão que de resto preencheu o ócio de imensa gente desde quinta-feira.

A discutir alguma coisa, era engraçado discutir o Nobel em si, e a reverência que suscita em certos e pasmados meios. Para os distraídos, convém informar que se trata de uma medalha e uma quantia estimável de dinheiro, atribuídos não por Nosso Senhor mas por um conjunto de nórdicos de carne e osso. O prémio da Literatura, a cargo de dúzia e meia de suecos da Academia local, é especialmente fortuito, recaindo sobre alguém cuja obra os suecos em questão leram e gostaram, ou nem leram e acham que cai bem fingir que gostam. Em 2011, os suecos "distinguiram" um poeta local que, ao longo da vida, publicou duzentas e tal páginas de poesia. Por mim, podiam ter "distinguido" o autor dos folhetos do Lidl. A medalha e o dinheiro são deles, pelo que só a eles dizem respeito.

A eles e ao premiado: a única circunstância em que me interessaria o Nobel seria se ganhasse um. Infelizmente, o da Literatura já calhou ao camarada Zé e, se voltar a um português nos próximos anos, não passará longe do arq. Saraiva ou do sujeito que escreve os livrinhos do eng. Sócrates. Como não tenciono preocupar-me com o assunto, resta-me a esperança de vencer o Nobel da Paz. Ou o do Sossego.

(Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico)

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