Ramon Font: o homem da Catalunha em Lisboa

Jornalista é o delegado da Generalitat em Portugal, que visitou pela primeira vez após o 25 de Abril.
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Na parede do escritório na Avenida da Liberdade, em Lisboa, está uma litografia original e numerada de Antoni Tàpies. "Para Ramon Font", lê-se por cima da assinatura do pintor catalão. O desenho, em que predomina o amarelo e o vermelho da bandeira da Catalunha, foi feito para um cartaz da feira de livros usados de Barcelona de 1974. Curiosamente o ano em que o agora delegado da Generalitat da Catalunha em Lisboa chegou pela primeira vez à capital portuguesa, deslumbrado com a revolução quando em Espanha ainda vivia Franco. "Sou consequência de Abril", disse, explicando que desde então a sua vida tem sido entre Portugal e a Catalunha, sempre com a obra de Tàpies atrás.

Em cima da secretária está o outro objeto pessoal que o ex-jornalista trouxe para a delegação, inaugurada na semana passada: um estatuto da Catalunha. O texto foi aprovado em referendo pelos catalães em junho de 2006, numa altura em que ele era o responsável pela comunicação da Generalitat, mas perdeu em 2010, entre outras coisas, a referência à Catalunha como "uma nação" por decisão do Tribunal Constitucional. "A sentença sobre o estatuto provocou uma frustração brutal em camadas enormes da sociedade catalã", contou ao DN. "Sempre fui catalanista, nunca fui independentista, mas não me admiro que o número de independentistas esteja a crescer."

Paixão pela rádio

Ramon Font nasceu em 1952 em Cervera, província de Lleida, e aos 8 anos já distribuía (e aproveitava para ler) os jornais da papelaria da família. "O meu pai gostava de ouvir as rádios clandestinas. Ouvia a Pirenaica, que era do Partido Comunista." Mas era na Rádio Paris que trabalhava o herói do adolescente Ramon: Josep Maria Madern. "Vivia na nossa rua. Vinha sempre depois do 14 de Julho [Dia da Bastilha], chegava de descapotável. Era uma figura que deslumbrava e eu ficava à espreita para poder ir falar com ele, como fazem os fãs." Foi ele que o aconselhou a meter-se na rádio. "Tinha 14 ou 15 anos quando comecei a ser jornalista."

Em 1974, quando já frequentava a escola de jornalismo de Barcelona e estava próximo de um grupo do partido comunista catalão - diz nunca ter militado em nenhum partido, mas são conhecidas as suas inclinações socialistas -, começou a planear a visita a Portugal, como tantos espanhóis fizeram depois do 25 de Abril. "Quando pessoas da minha geração conversam sobre Portugal a pergunta é sempre "Em que mês foste?". Eu costumo dizer que cheguei tarde, cheguei três meses depois."

Foi uma semana que teve um impacto profundo na sua vida e, depois de fazer a tropa em Madrid, sentiu que era melhor não voltar a Barcelona e vir para Portugal. Estávamos em 1976 e começou por trabalhar como freelancer para várias rádios, antes de entrar na agência EFE. Dois anos depois foi demitido por insubordinação e em julho de 1980 seria um dos fundadores do Tal & Qual. "Era noite de Santo António e o Joaquim Letria disse-me que ia deixar a RTP dentro de uma semana. Disse-lhe que tinha de lançar em 15 dias um jornal com aquele título extraordinário", recorda. "Fizemos um esboço nas toalhas de papel. A ideia era fazer uma publicação de informação de choque, mais atrevida do que a que havia na altura, na linha da Interviú, em Espanha."

Mas não ficaria lá muito tempo. Em janeiro de 1981, tornou-se correspondente da Rádio Nacional de Espanha. "Já fui diretor de várias coisas, mas nada se compara ao prazer de ter sido correspondente em Lisboa. Praticas um jornalismo transversal, fazes de tudo, política, drama, social, cultura, desporto... E depois estás sozinho, estás livre, podes subir ao Bairro Alto e descer o Chiado."

Em 1985, numa reunião do comité olímpico em Lisboa, soube pelos colegas soviéticos que caso não acontecesse nada no cenário político internacional, no ano seguinte Barcelona seria eleita para receber os Jogos Olímpicos de 1992. "A caminho do aeroporto, o então presidente da câmara, Pascual Maragall, disse: "Agora vocês são todos necessários em Barcelona." Eu acreditei nessa chamada e, em 1986, aproveitei a primeira oportunidade para regressar."

Quando chegaram os Jogos era diretor da RNE na Catalunha e resolveu fazer uma rádio olímpica, com emissões nas línguas oficiais: catalão, castelhano, inglês e francês. "Alguém não gostou que o primeiro quarto de hora fosse em catalão e fui exonerado 15 dias depois dos jogos." Já dirigia os telejornais da Antena 3 em Madrid quando "apareceu outra vez a nossa senhora de Portugal".

Foram os anos em que trabalhou para Lisboa Capital Europeia da Cultura 1994 (e Porto em 2001) e para a Expo"98. Pelo trabalho na primeira, recebeu "um daqueles reconhecimentos atómicos, que nunca podia imaginar": a comenda do Infante Dom Henrique. "As condecorações, disse-me uma vez o presidente Mário Soares, não se pedem, não se rejeitam e não se mostram", disse emocionado, explicando que "é importante quando és reconhecido pelo país que te acolheu". Anos depois, foi distinguido por Jorge Sampaio com o grau de oficial da Ordem de Mérito.

Entretanto já tinha passado dois anos em Barcelona como diretor-geral da TVE na Catalunha, para voltar em 2003 como correspondente da televisão espanhola em Lisboa. "Cometi um erro, as segundas partes nunca são boas, o jornalismo já tinha mudado muito." Refugiou-se na presidência da Associação da Imprensa Estrangeira (que já assumira antes) até deixar o jornalismo em 2005. Font colaborou então com a empresa catalã Media Pro, acabando um ano mais tarde por assumir a comunicação do governo catalão, num momento de transição, com gabinete no salão de San Jordi no Palácio da Generalitat. "Disse aos meus filhos [tem dois e quatro netos] que podia morrer tranquilo, porque nem no melhor cenário podia imaginar uma coisas destas." Em 2009 ainda seria presidente da entidade reguladora do audiovisual antes de voltar definitivamente a Portugal.

No ano passado, assumiu o cargo de delegado da Generalitat em Lisboa e agora tem finalmente uma sede. "Vim para cá com o meu Tàpies e o estatuto, já aprendi que temos de andar com a bagagem leve. O estatuto posso deixar ao meu eventual sucessor ou sucessora se as coisas não correrem bem. Uma decisão já tomei, não vou sair de Lisboa. E continuarei a trabalhar sempre pela Catalunha."

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