Ramalho Eanes pressiona Marcelo a ser fiscal das promessas eleitorais
Num tom sóbrio - o mesmo de há 40 anos - com um discurso certeiro, ainda que pouco eloquente, mas descomprometido de qualquer força político-partidária - tal como quando foi eleito a 27 de junho de 1976 - Ramalho Eanes pediu ao atual Presidente da República que fiscalize as promessas dos políticos. Porque considera ser "indispensável para a saúde da democracia regressar às raízes éticas da política para encontrar o sentido da ação coletiva".
"O Presidente da República (...) poderá seguramente até solicitar aos governos, aos partidos ou à Assembleia da República que forneçam informação, mesmo à sociedade civil, da exequibilidade financeira de certas promessas eleitorais que, embora apelativas ao voto, são manifestamente difíceis ou prejudiciais ao futuro da nação ou mesmo impossíveis de concretizar, como já temos visto", disse Ramalho Eanes, ontem na sessão evocativa dos 40 anos das primeiras eleições presidenciais em democracia, realizada na Fundação Calouste Gulbenkian.
Ostentando o Grande Colar da Ordem do Infante D. Henrique, com que foi condecorado, numa cerimónia em que "só" faltou o primeiro-ministro (à mesma hora discursava nas jornadas parlamentares do PS, nos Açores), o general defendeu a necessidade de maior aproximação dos políticos à população.
E o ex-presidente, que também deixou marca por dizer o que pensa e em que genuinamente acredita, deixou uma quantas ideias a Marcelo: "Se numa campanha eleitoral um político prometer que vai aumentar os vencimentos e fazer um conjunto grande de obras públicas para as quais não há qualquer capacidade financeira, o Presidente da República pode, sem se imiscuir na campanha, perguntar à Unidade Técnica de Apoio Orçamental, UTAO, se aquilo é possível."
Sem comentar as sugestões de Ramalho Eanes, Marcelo Rebelo de Sousa, o quinto presidente eleito em democracia, enalteceu o legado político do general na institucionalização da democracia em Portugal. "Aquelas semanas de campanha não haviam sido simples. A revolução continuava naturalmente presente na Constituição e no arranque da sua vigência. Vossa Excelência teve nesse contexto a missão histórica de abrir caminhos, de aplanar confrontos, de estabelecer pontes e o veredicto popular foi eloquente", disse o Chefe do Estado, recordando a eleição de Eanes, que venceu com 61,4% dos votos.
Marcelo Rebelo de Sousa, que acompanhou há 40 anos a campanha presidencial como subdiretor do semanário Expresso, disse reter lições da forma como Ramalho Eanes exerceu o mandato.
A primeira das quais, sustentou, é a lição sobre "o papel crucial do Presidente da República em clima de radicalização de posições e de atitudes, corporizando o máximo denominador comum em torno dos valores nacionais" e "resistindo a substituir-se ou a imiscuir-se em outros órgãos de soberania ou instâncias do poder".
E, perante um general de rosto fechado mas visivelmente sensibilizado com a homenagem, Marcelo prosseguiu os ensinamentos transmitidos por Eanes. "Ignorar ou minimizar as Forças Armadas por ação ou omissão das Forças Armadas é não apreender uma componente essencial da identidade pátria", além de "não perceber os desafios da segurança global" da atualidade.
A persistência das "linhas de política externa não sujeitas a impulsos ou estados de alma conjunturais", entre as quais a "fidelidade à Aliança Atlântica e o persistente rumo de integração europeia" são outras "lições" que Marcelo Rebelo de Sousa disse reter do legado de Ramalho Eanes que, frisou, foi enriquecido pelos seus sucessores.
E Ramalho Eanes, que sempre preferiu a discrição ao protagonismo político, foi ontem o centro das atenções para umas largas dezenas de figuras. Num tempo politicamente extremado, o ex-chefe do Estado conseguiu reunir a esquerda e a direita, os ex-presidentes Jorge Sampaio e Cavaco Silva, os revolucionários, os sindicalistas...
Depois das saudações ao homenageado dadas pelo ministro da Economia, Manuel Caldeira Cabral, pelo presidente da Assembleia da República, Ferro Rodrigues, pelo ex-primeiro-ministro, Pedro Passos Coelho, um reencontro marcou a cerimónia evocativa. "Então, António, estou aqui há tanto tempo e ninguém me liga." Otelo Saraiva de Carvalho, naturalmente, não poderia ter faltado. E a prova foi o abraço emocionado entre o vencedor e o derrotado do sufrágio de 1976.