Raios-X, a prenda de Natal que assombrou o final do século XIX

Nas vésperas do Natal de 1895, o físico alemão Wilhelm Conrad Röntgen procurava uma explicação para uma descoberta filha do acaso. No seu laboratório doméstico, Röntgen inaugurava uma nova era. A imagem de uma mão descarnada, a da sua mulher, emergia dos raios-X. Anna Bertha Röntgen afirmaria: "vi a minha morte".
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Quando em 1898 o britânico George Albert Smith apresentou a sua curta-metragem Santa Claus não era um estreante na recente arte cinematográfica. Hipnotizador, astrónomo e inventor, Albert Smith iniciara no ano anterior a sua carreira como realizador de cinema com a rodagem de meia dúzia de películas inscritas no género "filmes de truques". O cinema mudo conquistava públicos, rendidos à magia dos primeiros efeitos especiais. A câmara lenta/câmara rápida, a ação dupla e o stop motion, transpunham para a tela o assombro do ilusionismo. Albert Smith, correspondente do francês Georges Méliés, pioneiro na técnica e narrativa do cinema, estreou na Sétima Arte a figura de Santa Claus. Os 76 segundos de duração do filme (disponível numa pesquisa online) narram uma dupla ação: a de um Pai Natal que se introduz numa chaminé, a par da cena de duas crianças que a noite adormeceu. Para espanto do público do século XIX, Santa Claus sumia-se do cenário após presentear as crianças.

Meses antes de apresentar a sua película natalícia, o cineasta britânico olhou para os avanços da ciência da época captando-os num jogo de ilusões. Em The X-Rays, a atriz Laura Bayley (mulher de Albert Smith) e o ator Tom Green namoriscam num banco de jardim. Sem que percebam, interpõe-se-lhes uma visita inusitada. Uma câmara aponta aos dois atores para captar a primeira sequência de imagens ilusória fruto de raios-X. Nos segundos seguintes, uma dupla de esqueletos contracena indiferente ao exame radiológico. O filme prossegue no seu quase minuto de ação, com um desfecho melodramático. No palco público, um beijo roubado revestia-se de gravidade no século XIX.

Dois anos antes da exibição de The X-Ray, o engenheiro mecânico e físico alemão Wilhelm Conrad Röntgen experimentara perplexidade na intimidade do seu laboratório em Munique. Nascido em 1845 na cidade alemã de Lennep, Wilhelm lecionava física na Universidade de Munique. Em novembro de 1895, no laboratório de sua casa, o físico percebeu um brilho suave emitido pelo tubo de raios catódicos que usava numa experiência. Embora envolto em cartão, o tubo agitava de brilho uma placa florescente coberta de platinocianeto de bário, um composto químico. Na escuridão do laboratório, Röntgen matutava na possibilidade de estar perante um mundo novo. O físico percebeu que as emissões invisíveis poderiam ser usadas para projetar sombras na placa. Moedas no interior de uma caixa de madeira, bússolas, bobines de arame, entre outros objetos fabricados com diferentes materiais, foram expostos aos raios misteriosos. Os contornos fantasmagóricos de todos os artefactos ficaram impressos na placa.

Em dezembro de 1895, Röntgen chamou ao laboratório a sua mulher. Anna Bertha Röntgen não imaginaria que parte dos seus metacarpos, falanges e aliança de casamento, rodeados de penumbra de tecidos, ganhariam a posteridade naquela que é tida como a primeira imagem da história captada com recurso a raios-X. Raios assim apelidados por Röntgen face ao mistério que os envolvia, em alusão ao X de uma incógnita matemática. Frente à imagem irreconhecível da sua mão descarnada, Anna terá exclamado, "vi a minha morte". Assim o descreve a norte-americana Bettyann Revles no seu livro de 1997, Naked to the Bone, uma incursão pelo mundo da imagiologia médica desde as suas raízes aos desenvolvimentos na ressonância magnética e da tomografia por emissão de pósitrons.

Poucos dias após o Natal de 1895, a 28 de dezembro, Wilhelm Conrad Röntgen publicou o seu estudo sobre os raios-X. Breve, Veber Eine Neue Art von Strahlen (Sobre um Novo Tipo de Raios), assim como a mão esquerda de Anna, num aceno mórbido, agitaram o mundo da ciência, da Europa às Américas. A 5 de janeiro de 1896, o jornal austríaco Die Presse publicou o primeiro artigo com base na descoberta do físico alemão. Seguiram-se-lhe, a 6 de janeiro, o jornal britânico Daily Chronicle e a 23 do mesmo mês a norte-americana revista Nature. Uma agitação na imprensa que sucedia ao interesse revelado pelo físico austríaco Franz Arthur Schuster, professor na Universidade de Manchester. Ainda em dezembro de 1895, Schuster replicou no seu laboratório a experiência com raios-X do colega alemão. Uma rã com uma perna partida, uma bala alojada na base do cérebro e o pé do filho de seis anos de Franz testemunham a natureza das imagens captadas com os raios-X. Também o anatomista suíço Albert von Kölliker imortalizaria a mão da sua mulher, numa chapa impressa em janeiro de 1896.

Um frenesim de descoberta acompanhado de substancial volume de publicações científicas. O alemão Otto Glasser, pioneiro em radiologia e radioterapia, biógrafo de Röntgen, estima no seu livro de 1934, Röntgen- and the Early History of the Roentgen Rays, que o ano que precedeu à descoberta dos raios-X foi prolífico em publicações, com perto de 1100 artigos, mais de duas dezenas dos quais impressos nas páginas da norte-americana revista Science.

O novo olhar sobre o corpo humano desencadeou uma ingénua mania pelos raios-X no dealbar do século XX. O espanto da descoberta sobrepunha-se ao perigo da exposição recorrente e prolongada à radiação. Nos Estados Unidos, Clarence Dailly, assistente de Thomas Edison, sucumbiu a um cancro provocado pela exposição continuada aos raios-X. Antes, viu os dois membros superiores amputados. Thomas Edison abandonaria os estudos com raios-X. Não obstante, nas sapatarias norte-americanas proliferavam fluoroscópios. Apregoavam-se as maravilhas de um exame aos ossos dos pés como forma de avaliar o melhor calçado que se adaptava à anatomia de cada cliente. General Personal Hygiene, filme da década de 1920 (disponível online), advoga as vantagens de usar calçado adequado aos pés. Na década de 1950, o estado do Massachusetts legislou para que aparelhos de fluoroscópios fossem operados somente por médicos. Sete anos depois, o estado da Pensilvânia proibiu o uso dos fluoroscópios em sapatarias.

Em 1901, Wilhelm Conrad Röntgen foi galardoado com o primeiro Prémio Nobel da Física. "Várias cidades e ruas receberam o seu nome (...) prémios, medalhas e outras honras preencheriam uma página inteira deste livro [Nobel Lectures]. Apesar de tudo isto, Röntgen manteve-se um homem modesto e indeciso. Amável e cortês, revelou-se compreensivo face às opiniões de terceiros (...) Grande parte do aparato que usou construiu-o com grande engenho e espírito experimental", lê-se nas notas biográficas sobre o cientista, publicadas na página online da Fundação Nobel.

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