Rainha das oratórias portuguesas do século XVIII ouve-se no CCB
Nunca será de mais enaltecer a figura do compositor português Francisco António de Almeida (c. 1702-1755?), que, não obstante uma obra nada numerosa, cada vez mais se perfila como o maior compositor português do século XVIII. E quando a tal se alia a execução de uma obra de sua autoria, a conjugação é perfeita. É o que acontece esta sexta-feira, no Grande Auditório do CCB, palco para a apresentação da oratória La Giuditta (A Judite), que assim regressa a Lisboa 26 anos (!) depois.
Ao DN, Marcos Magalhães, diretor artístico e maestro dos Músicos do Tejo, confessa que "já há muito que desejava fazer esta obra - desde que ouvi a gravação do Jacobs". Desejo reforçado pelo facto de, "após o cómico da Spinalba e o pastoral-sublime do Trionfo d'Amore [obras de Almeida feitas anteriormente pelos Músicos do Tejo], impunha-se descobrir o Almeida mais dramático". E La Giuditta é arqui-dramática, com a famosa e sanguinária história da mulher judia que vai ao acampamento assírio e decapita o general Holofernes, salvando assim o seu povo, um tema amplamente glosado na pintura clássica. Daí que Marcos reconheça nela "uma pequena opera seria" - uma ópera sacra!
"O papel de Giuditta não é para qualquer soprano... - nota Marcos - é mesmo de alta rotação". Marcos realça ainda a mulher que "toma nas suas mãos o destino do seu povo", na qual nota "uma nobreza de caráter muito bonita", característica que, junto com o seu protagonismo absoluto, "é raramente dada a mulheres em obras dramáticas desta época", algo que, defende, "acrescenta uma dimensão à obra em termos de estudos de género".
O papel do "vilão" Holofernes é também cheio de furor e adrenalina, mas multidimensional ao nível psicológico!" Os outros dois, classifica-os de "mais melancólicos e melódicos". Mas também na orquestra identifica "partes muito difíceis, mormente para os violinos". Mas fala sobretudo do "equilíbrio que é preciso manter entre uma orquestra frequentemente com texturas cheias e exuberantes e os cantores, para não ocultar, não 'cobrir' a voz". Um trabalho que diz "gratificante", pois, resume: "importa mais ver o que soa do que o que está escrito na partitura".
Explorar o feio e o terrível
De resto, face ao Almeida que conhecia, "aqui há mais árias 'de bravura'". Terreno fértil para o maestro, que quer "acentuar o lado dramático da obra". Diz: "não me posso deixar levar pela sedução maravilhosa que o Almeida sempre tem. Quero explorar o lado feio e terrível do sublime que aqui existe". Menciona até um "lado esquizofrénico" latente em Holofernes e em Judite, na qual verifica "uma quase dissociação de personalidade".
Para o resto, confia no momento: "Interessa-me é o que está a acontecer quando estamos a tocar, valorizar o ato performativo, o prazer de tocar ao vivo". Ao contrário de Jacobs, que "não gravou uma, ou talvez duas, árias", hoje ouve-se a versão integral da obra. O cotejamento com Jacobs é inevitável: "Gostaríamos de a gravar, até para aproveitar o elenco de cantores que reunimos, que me parece perfeito. Jacobs fez uma bela gravação, mas eu tenho outra visão em certos pontos." De concreto, não existe (ainda) senão a ambição...
Sobre a obra em si, classifica-a de "muito importante para a nossa história da música. É das melhores obras do nosso Barroco, mesmo que não tenha tido propriamente descendência [a oratória só conhecerá um certo florescimento em Portugal no último terço do século XVIII]". Como a ópera na cidade papal só intermitentemente era permitida, esta "era uma maneira de fazer quase a mesma música, mas sem ser ópera". Descobre nela "uma dimensão e força espirituais", mas temperada pela "marca italiana, meridional, que lhe dá uma beleza-extra".
Almeida, um jovem mestre
O compositor teria 23-24 anos à data de estreia da obra. "É isso que é admirável: ele já tem uma maturidade incrível, um 'savoir-faire' impressionante e um fulgor muito grande!" Marcos ressalta o compositor "de muita imaginação" e que "cria momentos e ambientes muito diversificados com a orquestra que tem à sua disposição".
Um jovem abalançar-se a uma temática destas revela "um compositor com muita confiança em si mesmo. Ou então escolheu-o para causar efeito na sociedade romana..."
E depois da Giuditta, mais Almeida? "Gostava que se descobrisse por aí mais uma oratória das que se perderam [uma delas foi Il pentimento di Davidde, estreada em Roma em 1722]. Ou alguma da música instrumental que se sabe ele ter escrito e também se perdeu".
Radiografia de uma obra
La Giuditta foi ouvida pela primeira vez na Quaresma de 1726, na Chiesa Nuova (ou Igreja de Santa Maria in Vallicella, perto da Piazza Navona), em Roma. A Igreja Nova pertencia aos Oratorianos de São Filipe de Neri, ordem religiosa no seio da qual terá nascido o género da oratória sacra. A obra foi dedicada ao então embaixador português junto da Santa Sé, o Conde das Galveias André de Melo e Castro (1668-1753).
Estruturada em duas partes (cerca de 1h40m de duração total), La Giuditta prescinde de coro e de narrador, limitando-se a quatro cantores solistas (dois principais - Judite e Holofernes - e dois secundários, Ozia e Achiorre). A estrutura é uma estrita sucessão de recitativos e árias, abrindo com uma Sinfonia instrumental tripartida. Em suma, uma típica oratória de estilo romano.
O manuscrito está guardado na Biblioteca Estatal de Berlim/Património Cultural Prussiano, ao passo que o libreto (cujo autor permanece anónimo) se encontra conservado na Biblioteca Estatal da Baviera, em Munique, factos que levantam de imediato interrogações sobre a circulação desta obra no espaço germânico (também é provável que Almeida, enquanto em Roma, tenha visitado a corte de Dresden).
Se bem que se soubesse da sua existência, a obra esteve esquecida até que René Jacobs, o grande maestro belga especialista em música do século XVIII, a decidiu "ressuscitar". Apresentou-a em Lisboa, nas Jornadas Gulbenkian de Música Antiga de 1990 e gravou-a a seguir, para a Harmonia Mundi (edição: 1992), sendo essa, hoje ainda, a única gravação existente da obra.
Aquando do Porto-2001, a Orquestra Nacional do Porto tocou-a sob a direcção de Harry Christophers e, no verão de 2006, por iniciativa da Casa da Música, houve nova execução no âmbito do Festival de Música de Espinho. Agora, dez anos depois - e 26 anos depois, em Lisboa - La Giuditta volta a ser ouvida na capital.
Refira-se que, por ocasião da execução de 2001, foi feita uma edição moderna da obra, coordenada por Jaime Mota, Fernando Bessa Valente e Jorge Alexandre Costa, editada no ano 2000 pela Fermata, sendo essa a edição agora usada por Marcos Magalhães.
La Giuditta, oratória em 2 partes
Judite - Sandra Medeiros
Holofernes - Alberto Sousa
Achiorre - Ana Quintans
Ozia - Carlos Mena
Os Músicos do Tejo/Marcos Magalhães
Grande Auditório do CCB, dia 23, 21.00