RÂGUEBI GAY - Estes rapazes só querem divertir-se
Antigo jogador de râguebi, Filipe andou cinco anos para pôr em prática a ideia de criar um colectivo desportivo que tivesse como lema a não discriminação da orientação sexual dos seus jogadores. Daí que à primeira oportunidade o grito pop feminista dos anos 1980, na voz de Cyndi Lauper, Girls Just Wanna Have Fun [As Raparigas só Querem Divertir-se] se tornasse o mote para denominar a primeira associação portuguesa cujos atletas são assumidamente homossexuais e bissexuais.
E como o divertimento não tem género, Boys Just Wanna Have Fun [Os Rapazes só Querem Divertir-se] assentou que nem uma luva a este projecto pioneiro, que arrancou em Setembro de 2009.
Estabelecida a associação, seguiu-se o não menos simbólico nome da equipa: Dark Horses – os cavalos pretos pelos quais não se dá nada nas famosas corridas mas que, por norma, acabam vencedores. Depois foi só recrutar gente despudorada e com vontade de praticar desporto. «Criou-se um site onde se inscreveram oitenta pessoas. No primeiro encontro só apareceram 25. Hoje, desse grupo só existem quatro», conta Filipe, agora treinador, logo que entramos num campo de treinos numa tarde de muito calor, em Lisboa.
À nossa espera estão 15 elementos que, ultrapassados os minutos iniciais de aquecimento, se vêem reduzidos a nove porque os restantes receiam ficar na fotografia de grupo. Ainda assim, os Dark Horses são 35 no total, com idades entre os 18 e os 43 anos. Alguns são protagonistas de um documentário que vai ser exibido no Queer – Festival de Cinema Gay e Lésbico, que arrancou ontem em Lisboa e decorre até 25 de Setembro [ver caixa].
«O nosso objectivo é federar a equipa e poder jogar com equipas emergentes, mas aguardamos que os estatutos da associação saiam em Diário da República», acrescenta Filipe, de 34 anos, numa postura distante, após colocar os jogadores a treinarem placagens.
A prova de fogo para a sobrevivência da equipa ocorreu durante o Inverno quando, devido à inexistência de um campo fixo, treinou debaixo de chuva e ao frio. Partidas ainda contam com poucas, à excepção do primeiro torneio internacional que organizaram, recentemente, em Carcavelos, e de outras tantas em que defrontaram equipas universitárias ou os Oporto Spartans, uma equipa gay do Porto, mais recente do que a de Lisboa. «Apesar das dificuldades, permanecer é uma forma de transmitir que temos força para estar no râguebi», garante.
Lesões constantes
Nuno sai lesionado após uns pontapés na bola. Os restantes colegas comentam que parece atrair o azar. É uma espécie de «lesionado de serviço». Desta vez é um dedo anelar fracturado. «Tenho de ir ao hospital», balbucia para o treinador enquanto abandona o treino.
Já Ricardo, que nunca tinha praticado qualquer desporto – além do habitual ginásio –, baptizou-se no râguebi partindo o nariz. «Quando decidi vir para a equipa, uns amigos disseram-me: vais partir-te todo. Só acertaram em parte.» Liberta uma gargalhada. Com 33 anos, pouco fala de si, focando-se no colectivo e as palavras soltas versam respeito e companheirismo.
É este gestor de profissão que lá desfia as preocupações dos atletas da Boys Just Wanna Have Fun (BJWHF). «Pagamos tudo do nosso bolso, não só os equipamentos como o aluguer de campos em Lisboa.» Daí que até tenham lançado um apelo no orçamento participativo de Lisboa: criar um campo de râguebi municipal. «Este ano poderíamos ter ido aos Estados Unidos competir, mas era uma despesa elevada. Estamos a preparar tudo para participarmos na Union Cup, para o ano, em Amesterdão», garante.
«Ó Huguinho! Vá lá, é para correr», incita Filipe, explicando à NS’ a razão da postura momentânea dos seus jogadores: «Como é a primeira vez que estão a ser acompanhados por uma equipa de reportagem, sentem-se nervosos e não dão o máximo.»
Pedro, de 31 anos, dá – ou não contasse no currículo com desportos colectivos amadores, os quais chutou no dia em que percebeu a necessidade de deixar de esconder quem verdadeiramente era. «Chega-se a um ponto em que por muito que se goste da equipa em que se está, quando se começa a ser bombardeado com perguntas sobre a namorada que nunca viram, os filhos que não surgem e não se pode afirmar a orientação sexual porque há piadas no balneário, aí o prazer de conviver com o grupo desaparece», explica este gestor que chegou aos Dark Horses através de amigos.
No ranking das mazelas, Pedro até nem está mal classificado, à mercê de umas entorses. «Há situações bem piores. É preciso é que percebam que isto não é violência gratuita. São simples incidentes», faz questão de frisar, até porque no fim deste mês haverá treinos de captação e não convém assustar os novos jogadores.
Contra os preconceitos
«Repete pá! Ali», grita Filipe, esbracejando, apoiado por um apito. «Fogo! Repete, repete junto dos pinos», insiste, com ar sisudo, teimando em não tirar os óculos de sol que lhe escondem o olhar durante todo o treino.
Luís está ali mesmo ao lado e é um dos que não se incomodam com a objectiva. «Quer que eu fale?», atira, sem complexos, nas duas vezes que olha para trás. «Os outros colegas não deram o apelido?» Fica pasmado. «Não me importo de dizer o nome, mas já agora, para ficar tudo igual…», corrige este engenheiro quando se apercebe de que o seu à-vontade não é partilhado por todos.
Aos 31 anos, a compleição física é resultado de anos de natação e ciclismo. «Vim para aqui devido a um conhecido que já cá andava e a ideia pareceu-me muito interessante», adianta. Alguns amigos sabem, a mãe idem, só o pai é que desconhece o associativismo do filho na BJWHF. «Aqui sua-se a camisola com esforço e dedicação. Não ficamos a dever nada a outras equipas», sublinha.
Ora se suam a camisola tal como numa outra qualquer equipa, porquê formarem uma em que a heterossexualidade não predomina? Porque assim é muito mais fácil do que estar a explicar a mentes preconceituosas que um jogador gay, após a sua assunção, não irá apaixonar-se pelos restantes colegas, não os atacará no duche, à luz da eterna história do sabonete caído no chão, não passará a ter tiques efeminados, os agarrará de forma sensual à primeira oportunidade num treino e muito menos a lycra cor-de-rosa pontuará no seu equipamento.
«Há aí uns senhores muito mal resolvidos que deveriam saber que a homossexualidade não se pega e não é moda», resume Filipe. Na verdade, os rapazes da Dark Horses «só querem divertir-se», tal como quaisquer outros, independentemente da sua orientação sexual.
Sair do armário
– As equipas homossexuais de râguebi de Lisboa e Porto juntam-se a um total de 38 existentes em todo o mundo, sendo a Europa e a América do Norte os principais focos de concentração. Em Braga e Guimarães prepara-se o arranque de formações semelhantes.
– No início de 2010, a estrela do râguebi galês Gareth Thomas assumiu a sua homossexualidade. O jogador esperou até aos 35 anos para acabar com um casamento com a namorada de infância. A vida daquele que é o nono atleta mundial de sempre a marcar mais pontos numa selecção, neste caso a do País de Gales, irá ser transportada para o cinema. Thomas junta-se aos nomes de outros jogadores de râguebi que se assumiram, como Ian Roberts.
– Vencedor de quatro medalhas olímpicas, o nadador australiano Daniel Kowalski, de 34 anos, também saiu do armário na senda de Gareth Thomas. Kowalski admitiu que a decisão foi motivada pela inveja com que ficou quando viu a felicidade do galês depois de assumir a sua orientação sexual.
– Terá sido das entrevistas mais polémicas publicadas pela revista Der Spiegel, no rescaldo da participação da Alemanha no Campeonato do Mundo de Futebol: o agente do jogador Michael Ballack garantiu que a selecção alemã «está pejada de gays». Michael Becker chega mesmo a afirmar que os bons resultados da Alemanha se devem a esse facto.
Doc gay made in Portugal
Treinos e algumas histórias pessoais dos Dark Horses em cinquenta minutos de documentário. Esta é a proposta de Luís Hipólito e Margarida Moura Guedes, que acompanharam os treinos da equipa homossexual de râguebi durante seis meses, com algumas interrupções pelo meio, e agora se propõem mostrá-los no Queer – Festival de Cinema Gay e Lésbico de Lisboa.
Apesar de a hora não lembrar a ninguém, o documentário Boys Just Wanna Have Fun será exibido numa sessão especial, pelas 18 horas de quinta-feira, dia 23 de Setembro, na Sala 2 do Cinema São Jorge, no âmbito da parceria do festival com a RTP2.