Racismo(s): o exemplo que vem do Brasil
A nova eleição de Lula para presidente do Brasil coincide com um momento histórico em que largos setores da sociedade do país, a maioria segregados e discriminados até agora, parecem resolvidos a resgatar a verdadeira história brasileira, não apenas colocando no lugar central aqueles que sempre foram marginalizados, apesar de serem a maioria, mas também enfrentando as causas e os fatores dessa marginalização.
A icónica imagem da subida da rampa do Palácio do Planalto pelo presidente Lula da Silva, acompanhado de um grupo representativo de toda a diversidade brasileira, no dia da sua tomada de posse transformou-se instantaneamente no maior símbolo da atual determinação da maioria dos cidadãos brasileiros de colocar essa diversidade no centro do poder. Esse exemplo extraordinário, que fez capa em todos os jornais do mundo, terá sido um dos fatores contra o qual se levantaram, apenas uma semana depois, as hordas de bárbaros, cujas ações terroristas e intuitos golpistas não merecem dúvidas.
Na coluna de hoje, quero sobretudo destacar outro facto, consumado poucos dias depois de a intentona bolsonarista ter sido controlada: a promulgação pelo presidente Lula da lei que equipara injúria racial a racismo. Essa decisão do novo governo brasileiro atesta a sua decisão de, como antecipei acima, enfrentar aberta e decididamente as causas e fatores que estão por detrás da histórica segregação e discriminação da maioria demográfica do país por parte da minoria, numa autêntica situação, vou dizê-lo, de apartheid não declarado.
Não tenhamos dúvidas: trata-se de uma decisão histórica. Recordo que o Brasil já possui uma lei contra o racismo, aprovada em 1989. Essa lei, entretanto, sofreu uma alteração em 1997, quando a maioria dos deputados criou uma diferenciação entre ofensas racistas dirigidas diretamente a uma pessoa e a discriminação racial. Assim, a injúria racial foi extirpada da lei contra o racismo e colocada no Código Penal.
Como resultado, a injúria racial tornou-se um crime menos grave, como pena menor e podendo mesmo prescrever após um determinado prazo. Em caso de alguém ser acusado de injúria racial, poderia mesmo responder em liberdade, mediante o pagamento de uma indemnização. A verdade é que, devido a essa diferenciação, praticamente ninguém foi condenado até hoje no Brasil por crime de racismo. Além da conversão da maioria de acusações de racismo em crimes de injúria racial, contribui também para isso o facto de grande parte dos juízes, cuja maioria é formada por pessoas brancas, heterossexuais e de classe alta, ter pouco conhecimento do que é racismo ou discriminação e não saber o que é direito anti-discriminatório.
A equiparação de injúria racial e racismo é correta, justa e necessária. Afinal, e como bem observou Adilson Moreira, autor do livro Racismo Recreativo, o que está por detrás das injúrias raciais contra indivíduos negros, muitas delas em forma de "meras" (aspas imprescindíveis) piadas, é o conceito de supremacia branca, ou seja, a ideia de que as populações brancas são superiores às demais. De notar que a lei acabada de sancionar pelo presidente Lula estabelece penas mais duras se as ofensas racistas ocorrerem através do humor ou em ambientes culturais, desportivos e similares.
Uma nota final, que me parece imprescindível: a equiparação de injúria racial e racismo torna inútil e desnecessário, por exemplo, o debate sobre a existência ou não de negros racistas. Obviamente, também os há. Ou seja, todos podemos ser racistas. Negros, asiáticos ou ameríndios também podem cometer injúrias raciais contra brancos, mesmo quando não são eles que controlam as estruturas de dominação dos respetivos países, como no Brasil.
Fica claro de uma vez por todas, assim, que o objetivo da luta antirracista é acabar com todas as formas e manifestações (estruturais ou "recreativas") de racismo, independentemente de quem as pratica. A lei que o presidente brasileiro acaba de promulgar é um exemplo para todo o mundo.
Escritor e jornalista angolano
Diretor da revista África 21