Quo vadis, Espanha
Há quatro dias, a Espanha figurava entre os quatro favoritos do Mundial. A campanha na fase de qualificação tinha sido impecável. As excelentes atuações frente a Itália, Alemanha e Argentina devolveram o crédito à equipa, desvalorizado nos últimos quatro anos depois de ter dominado o cenário do futebol mundial. Tudo funcionava: a velha guarda (Sergio Ramos, Piqué, Busquets, Iniesta e Silva" mantinha o vigor e a sabedoria, a nova geração (Isco, Carvajal, Asensio e Koke) sentia-se por fim cómoda junto aos veteranos campeões, o selecionador Lopetegui dirigia a equipa com uma sensatez semelhante à do seu antecessor, Vicente del Bosque, mas com mais conexão com os jovens. Mais do que uma seleção, era um mundo feliz. Agora, um dia antes do jogo diante de Portugal, a seleção espanhola é um inferno.
Nas vésperas do início do Mundial, o Real Madrid anunciou a contratação de Lopetegui, despedido da seleção poucas horas depois, no meio de uma gigantesca crise que ameaça gravemente o futuro da Espanha na competição e agita todo o tipo de fantasmas, desde os estritamente futebolísticos - Fernando Hierro, diretor desportivo da Federação Espanhola, sem outra experiência como treinador, à exceção da breve passagem pelo Oviedo, na II Divisão, será o treinador no Mundial - até aos problemas políticos.
A crise política na Catalunha gerou uma enorme tensão no resto da Espanha, o que desencadeou uma extrema sensibilidade em todas as questões relacionadas com a unidade da nação. O futebol não é alheio a este problema, que muitas vezes extravasa para a seleção. Gerard Piqué, catalão e jogador do Barcelona, não é independentista, mas sim partidário de um referendo na Catalunha sobre a independência. As suas críticas estendem-se à atuação da polícia espanhola no referendo convocado pelos partidos independentistas, declarado ilegal pelos juízes.
Nos últimos quatro anos, os adeptos espanhóis assobiaram constantemente Piqué em cada jogo que fez pela seleção. Em várias ocasiões chegou-se a uma inquietante crispação. Contudo, Piqué esteve em todas as convocatórias da seleção, com um desempenho impecável. A Piqué, e a tudo o que diz respeito ao Barcelona, é reservado um tratamento suspeito. Na sensível situação atual, o Real Madrid funciona como uma referência contrária ao Barcelona.
O Real Madrid não diz que é mais do que um clube, como proclama o Barcelona, mas de facto é. É a equipa mais popular, mais rica, mais ganhadora e a quem é atribuída uma representatividade que excede o futebol: o Real Madrid é Espanha. No entanto, a equipa-bandeira do futebol espanhol contratou o treinador da seleção nacional, da equipa de todos e não só de alguns. Em alguns setores isto foi interpretado como um ato de sabotagem à equipa nacional. O jornal AS titulava "Soco na seleção". Na sua coluna de opinião, o diretor do jornal, Alfredo Relaño, provavelmente o mais prestigiado de todos os jornalistas desportivos espanhóis, fez outro título: "Este Madrid fabrica antimadridismo".
O despedimento de Lopetegui foi fulminante. É difícil encontrar precedentes para um caso tão escandaloso. Embora a sua relação fosse boa, a sua posição era indefensável. O novo presidente da Federação Espanhola, Luis Rubiales, ex-jogador do Levante, sentiu-se traído e um zé-ninguém nas horas que antecederam o torneio mais importante do mundo. Ninguém, nem o Real Madrid nem Lopetegui, deu conta das negociações. Teve conhecimento da contratação cinco minutos antes de o Real Madrid emitir um comunicado a anunciar o acordo com o selecionador. Ainda que Lopetegui só quisesse abandonar a seleção durante o Mundial, o presidente da federação não o permitiu. Essas questões decide a federação e não o treinador, menos ainda um selecionador que já é treinador de outra equipa.
Com este cenário desolador, a Espanha, antes favorita no Mundial, chega ao primeiro jogo. Espera-a Portugal, mas ninguém fala sobre isso. É tão grande o choque que o Mundial passou para segundo plano, uma aberração que convida a pensar no fracasso colossal da seleção espanhola, onde os jogadores foram as grandes vítimas deste desastre.
Santiago Segurola pertence à equipa de cronistas do DN durante o Mundial