"Querido, mudei a Comissão Europeia"

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Ursula von der Leyen, presidente eleita da Comissão Europeia, anunciou nesta terça-feira em Bruxelas as suas escolhas para o mandato 2019-2024, e o resultado é uma autêntica remodelação. As novidades são muitas e incluem uma comissão mais equilibrada em termos de género e em termos de proveniências partidárias, mas sobretudo um grande rearranjo da estrutura e da distribuição das pastas.

No seu discurso, Von der Leyen (VDL) anunciou algumas prioridades para o próximo mandato: "Vamos adotar medidas decisivas para fazer face às alterações climáticas, reforçar a nossa parceria com os Estados Unidos, definir as nossas relações com uma China cada vez mais assertiva e ser um vizinho de confiança, por exemplo em relação a África. Esta equipa terá de lutar pelos nossos valores e por normas reconhecidas à escala mundial." A nova comissão tem uma estrutura centrada em três grandes temas: clima, tecnologia e economia, a cargo de três vice-presidentes executivos, Frans Timmermans, Margrethe Vestager e Valdis Dombrovskis.

Frans Timmermans, spitzendandidat derrotado, ficou com a pasta do pacto verde europeu, responsável por coordenar assuntos relacionados com alterações climáticas e sustentabilidade. VDL quer que a Europa se torne o primeiro continente com impacto neutro em termos climáticos, e também que "a Europa exporte conhecimentos, tecnologias e boas práticas". Outra derrotada na corrida à liderança, Margrethe Vestager, acumula a sua pasta anterior - concorrência - com políticas para a tecnologia e o digital. Será vice-presidente executiva para uma Europa preparada "para a era digital". VDL falou em assegurar a "soberania tecnológica", reforçar a cibersegurança e aproveitar a inteligência artificial e os big data. Por fim, Dombrovskis será VP executivo para "uma economia ao serviço das pessoas". VDL colocou como objetivo "reconciliar a vertente de mercado com a vertente social na nossa economia".

Correndo o risco de caricaturar, a nova comissão parece querer uma estrutura semelhante a uma moderna start-up, mas falha o objetivo. Em 28 elementos, temos uma presidente, três vice-presidentes executivos e cinco vice-presidentes, criando dúvidas, em algumas áreas, sobre quem será o líder. VDL respondeu às críticas dizendo que quis uma estrutura "focada em tarefas e não em hierarquias", mas só o tempo dirá se a fórmula resulta. Não só a estrutura tem sido recebida pelos analistas como mais confusa mas também a nomenclatura. O mais problemático é mesmo o nome do cargo de Margaritis Schinas, comissário grego, que terá a pasta da proteção do modo de vida europeu, expressão que tem sido veementemente criticada por estar associada a ideias que a União Europeia tem rejeitado, como a de uma superioridade europeia. A carta de missão de Schinas diz mesmo que o cargo responde a "preocupações e medos legítimos sobre o impacto da migração ilegal", deixando implícito que as insinuações de Salvini e Orbán, que não estão assentes em estatísticas, já penetraram no discurso oficial da Comissão.

Dos 27 elementos da nova comissão, 13 são mulheres, um número que garante a paridade e que, tendo em conta o histórico europeu, é notável. Quanto à composição partidária, temos dez elementos dos Socialistas, nove do PPE, seis do Renascimento Europeu, um dos Verdes e um dos Conservadores e Reformistas. Estas contas assumem que o PPE e os Socialistas já aceitaram de volta os nomeados dos partidos que tinham afastado, designadamente o Fidesz (Hungria) e o PSD (Roménia), respetivamente - este será um assunto necessariamente falado no "regresso às aulas" europeu.

A conferência de imprensa permitiu ainda um esclarecimento de Von der Leyen: "Caso o Reino Unido peça uma extensão do prazo [para o Brexit], e caso lhe seja concedida, então de acordo com as regras dos Tratados, sim, teria de ser nomeado um comissário e essa pessoa receberia uma pasta." O Reino Unido tem saída prevista da União Europeia a 31 de outubro, véspera da tomada de posse da nova Comissão, e por essa razão não nomeou um sucessor de Julian King, anterior comissário britânico. Os Tratados referem que o número de comissários deve ser de ⅔ do número de Estados membros, a não ser que o Conselho Europeu decida unanimemente alterar esse número. A última decisão do Conselho a esse respeito data de maio de 2013 e diz que o número de comissários deve ser igual ao número de Estados membros, mas inclui também uma menção à necessidade de ser revista antes da tomada de posse desta nova comissão.

Uma das pastas mais difíceis do mandato será a de Věra Jourová, comissária nomeada pela República Checa, e que terá a seu cargo a monitorização do cumprimento do Estado de direito na União. A atribuição desta pasta a uma comissária de um dos membros do Grupo de Visegrado (Polónia, Hungria, República Checa e Eslováquia), fonte de problemas nesta área nos últimos anos, poderá facilitar o diálogo com esses países, e tem sido vista como uma boa jogada estratégica de VDL.

O destaque maior, pela negativa, pode ser dado ao comissário nomeado pela Hungria, László Trócsányi. Seria sempre difícil atribuir uma pasta a um ex-ministro da Justiça de Orbán, responsável pela reforma que limitou a independência do poder judicial na Hungria. No entanto, a atribuição da pasta do alargamento e política de vizinhança será certamente muito contestada no Parlamento Europeu. A Hungria tem sido criticada pelo seu envolvimento na política nos Balcãs, precisamente a área onde se encontram os candidatos à adesão à União Europeia, e tem também problemas no relacionamento com a Ucrânia, um dos países da vizinhança mais importantes em termos geoestratégicos.

Tarefa difícil terá também a comissária Dubravka Šuica, da Croácia, vice-presidente para a democracia e demografia. Šuica foi, no mandato anterior, uma das eurodeputadas que votaram contra a aplicação do procedimento do artigo 7.º à Hungria por violação dos princípios fundamentais da União Europeia. Isso terá de ser explicado a um Parlamento Europeu fortemente favorável à sanção à Hungria.

Para o comércio internacional, Von der Leyen escolheu o comissário irlandês Phil Hogan. Esta escolha pode ser mal interpretada no Reino Unido, já que será precisamente com os britânicos que a União Europeia terá de negociar um novo tratado comercial após o Brexit, uma vez que é a fronteira com a Irlanda que tem criado dificuldades à negociação de uma saída com acordo. Na carta de missão enviada por Von der Leyen a Hogan, pode ler-se um pedido para apostar no fortalecimento dos instrumentos comerciais de resposta a medidas ilegais e tentativas de bloqueio da Organização Mundial do Comércio adotadas por outros - uma forma mais discreta de se referir às atitudes recentes da administração Trump. Destaque ainda para o pedido de desenvolvimento e implementação de um imposto fronteiriço sobre o carbono.

A França consegue uma vitória, ao obter para Sylvie Goulard a pasta da Defesa e a supervisão do mercado interno, o que inclui a gestão de uma nova Direção-Geral para a Indústria, Defesa e Espaço. Goulard está incumbida de liderar a abordagem europeia para a Inteligência Artificial e fortalecer a soberania tecnológica europeia, e terá de trabalhar em conjunto com Vestager em áreas como a concorrência, a política industrial ou a cibersegurança, por exemplo. O facto de pertencerem à mesma família europeia deverá facilitar a tarefa.

A pasta do Ambiente, integrada na grande equipa do pacto verde europeu de Timmermans, vai finalmente ficar nas mãos de um membro dos Verdes europeus (no mandato anterior foi de um comissário do PPE, Cañete). Em falta, de forma muito visível, ficaram as pastas da Cultura e da Ciência, que perdem destaque. A ciência foi integrada na pasta da Inovação e Juventude, a cargo da búlgara Mariya Gabriel, e a cultura desaparece mesmo.

E Portugal? Costa pediu, e Costa obteve a tutela dos fundos estruturais da União para Elisa Ferreira. Obteve ainda alguns bónus, como a coordenação das políticas urbanas e a supervisão do Fundo para Uma Transição Justa, que pretende suavizar os sacrifícios em prol do clima pedidos aos Estados membros. Na carta de missão enviada por VDL a Elisa Ferreira, pode ler-se: "A tua tarefa ao longo dos próximos cinco anos é a de assegurar que a Europa investe e apoia as regiões e as pessoas mais afetadas pelas transições digital e climática, sem deixar ninguém para trás à medida que avançamos juntos." Inteligentemente, VDL incumbe também Elisa Ferreira de ajudar a desbloquear negociações para o Instrumento Orçamental para a Convergência e a Competitividade, o famoso "orçamento" da zona euro. E prescreve visitas no terreno: "Deverás visitar projetos, chamar a atenção e falar com as pessoas no terreno para veres como podemos melhorar a implementação e atender melhor às suas necessidades."

Curiosamente, os partidos portugueses, que estiveram em silêncio durante boa parte do processo, não tendo posição clara sobre a estratégia que Portugal deveria adotar, têm agora declarações muito moderadas sobre a pasta, chamando-lhe "relevante", dizendo que é preciso aguardar para ver, ou falando em "péssimo presságio".

Certo é que Costa teve o que pediu. Ao ver os seus desejos realizados, Portugal acabou por ser um dos vencedores deste processo, a par da França, da Itália, que consegue a pasta da Economia depois de se ter afastado o perigo de uma nomeação pela mão de Salvini e de enviar o ex-primeiro-ministro Paolo Gentiloni, e da Letónia, com uma terceira vice-presidência executiva inesperada.

Durante as próximas semanas, os candidatos a comissários serão ouvidos pelo Parlamento, que terá a palavra final quanto à composição da próxima comissão. Esperam-se audições difíceis para candidatos provenientes de países com governos "problemáticos", como a Hungria, a Polónia, ou a Roménia, mas também para candidatos de países com governos moderados em questões particulares, como Josep Borrell sobre a Catalunha e o Kosovo, ou Sylvie Goulard sobre as acusações de uso indevido de fundos europeus no seu mandato como eurodeputada.

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