Querer é... emagrecer

Programas como o The Biggest Loser ou a versão portuguesa Peso Pesado mostram-nos a transformação de pessoas obesas em pessoas com o peso certo ou próximo do certo, apenas através de reeducação alimentar e do exercício físico. Pessoas que não imaginávamos que conseguissem emagrecer tanto sem ser pelo recurso a cirurgias gástricas que limitassem a sua compulsão alimentar. A nm foi à procura de quem acreditou que era possível mudar de vida, sem cirurgias, comprimidos ou a participação em programas de televisão. Quatro casos de sucesso. Quatro pessoas que, com a sua força de vontade e com muita garra, moveram a montanha da obesidade e removeram-na da sua vida. Espera-se que para sempre. Quatro histórias de sucesso, com muito peso perdido. Ao todo, são menos 183 quilos de sofrimento, vergonha, e culpa. Fardos mais pesados do que a própria gordura.
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Margarida Araújo

Pesava 179 quilos

Pesa 112 quilos

Perdeu 67 quilos (em oito meses). E vai continuar a perder.

Tem a T-shirt colada às costas e as bochechas escarlate. Os cabelos pingam do esforço e o coração vê-se bater no pescoço, mas o sorriso, esse, é enorme. Margarida Araújo, 33 anos, acabou agora mesmo mais uma dura sequência de exercícios, no ginásio que frequenta há oito meses. É sábado e, por isso, este é o sexto treino da semana. Sim, Margarida treina seis vezes por semana. Ou seja, todos os dias excepto ao domingo. «E é porque o meu personal trainer não me deixa. Diz que o meu corpo também precisa de descansar. Mas por mim vinha também ao domingo! Ganhei o vício e agora simplesmente não consigo não vir. Às vezes saio do trabalho às oito da noite e venho a correr porque o ginásio fecha às dez. Parece que até me falta o ar se não vier. Quem diria...»

Quem diria. Foi no dia 12 de Outubro de 2010 que a sua irmã mais nova, Sílvia, praticamente a arrastou até à porta do ginásio. Margarida andava, nessa altura, entusiasmada com o programa Biggest Loser, que passava na SIC Mulher: «Via aquelas pessoas e pensava: "Esta gente é como eu e consegue! Só com reeducação alimentar e com ginástica. Ora, se eles conseguem, porque é que eu não hei-de conseguir?" E então comecei a dizer em casa que estava a pensar inscrever-me num ginásio. Mas, depois, retraía-me, tinha vergonha de ir para um ginásio, povoado por todas aquelas jeitosas. A minha irmã, ao ouvir-me, disse: "Vergonha devias ter por estares nesse estado!"»

O estado, o seu estado, era pior, muito pior do que Margarida podia imaginar. No dia 18 de Outubro, o personal trainer Gonçalo Fonseca esperava-a para uma avaliação corporal. Quando a mandou subir à balança seguiu-se um silêncio gelado. Margarida pesava... 179,1kg. «Não imaginei que estivesse tão pesada. Já não subia a uma balança há algum tempo e estimava que tivesse aí uns 150 quilos. Quando vi o peso fiquei chocada. Mas o Gonçalo não me desanimou. Exclamou: "Vieste mesmo na altura certa!"». Além do peso, muito elevado, Margarida tinha um IMC (índice de massa corporal: valor que se obtém fazendo um cálculo entre a altura e o peso) de 52,9 (o que se considera «normal» fica entre 20 e 25). A massa gorda do seu corpo correspondia a 92 quilos.

O personal trainer Gonçalo Fonseca não a desanimou mas hoje está à vontade para confessar que apanhou um susto quando a viu, e outro quando a pesou: «Fiquei quase sem palavras. Em vários anos a trabalhar com o controlo do peso nunca tinha contactado com alguém da dimensão da Margarida. Era seguramente o meu maior desafio enquanto fisiologista do controlo do peso e personal trainer.»

Margarida Araújo nasceu a 27 de Julho de 1977 na freguesia da Sé, no Porto. Nasceu um mês antes da data prevista e, por isso, não começou a vida com peso a mais, pelo contrário. Foi a partir dos quatro anos que começou a engordar. Comia muito. Repetia os pratos, comia doces, tinha sempre uma fome voraz. A família ficava encantada com o apetite da menina, uma maravilha, tomara todas as crianças serem assim tão boas para comer.

Mas o peso foi aumentando e a auto-estima diminuindo com a mesma intensidade. Margarida lembra-se de ser criança e de já não gostar de si: «Sentava-me sempre na última fila da sala de aula. Nas fotografias de grupo estava sempre atrás, escondidinha.» Quando perceberam que a filha comia mais do que devia, os pais tentaram pôr um travão mas era muito difícil: «Eu berrava que tinha fome e eles tinham pena de mim e cediam.»

E assim foi crescendo. Refugiou-se nos livros, foi sempre das melhores alunas, licenciou-se em Comunicação Social na Escola Superior de Jornalismo do Porto e trabalhou três anos no Comércio do Porto, altura em que o jornal acabou. Depois, seguiu-se o desemprego, que durou quatro anos, mais por culpa dela do que por culpa do mercado: «Toda a gente sabe que as coisas não estão bem para quem tem o curso de Jornalismo, mas o problema é que eu nem ia às entrevistas porque tinha vergonha. Quando me vi sem emprego refugiei-me na comida e depois já não conseguia enfrentar as pessoas porque me sentia mal. É uma pescadinha de rabo na boca. Comemos porque não estamos bem e não estamos bem porque comemos.»

Margarida estava cada vez maior e cada vez mais deslocada. Nunca se sentia bem, fosse entre amigos, fosse em casa. «Quando ia a uma esplanada tinha de escolher uma que não tivesse cadeiras de plástico porque não aguentavam com o meu peso. Também não podiam ter braços, porque eu não cabia lá dentro. No cinema, tinha de levantar um braço à cadeira para me poder sentar. Se o cinema não tivesse dessas cadeiras, tinha de sair. Chegou a acontecer, eu e os meus amigos sairmos da sala porque eu não cabia na cadeira. Nos transportes públicos ocupava dois lugares...» Aparentemente, era feliz. Bem disposta. Os amigos, mesmo os mais próximos, não podiam adivinhar que Margarida sofria, em silêncio. Até porque ela era a primeira a gozar consigo própria e a fazer piadas sobre as situações mais embaraçosas. Como se nada a afectasse. Como se ser gorda não fosse sequer uma questão. E, talvez por isso, nunca foi excluída dos grupos, nunca foi discriminada pelos amigos, sempre teve uma vida social activa: «Passei pelas praxes todas, na faculdade. Nunca me neguei a fazer nada. Sempre me integrei muito bem e sempre fui popular. Acho que era a minha fuga para a frente.»

Mas se era verdade que os amigos não lhe olhavam ao peso, não era menos verdade que foi sempre sentindo os olhares dos desconhecidos, os comentários, as bocas, a chacota. «Ouvi de tudo. Desde o "Olha que gorda!" ao "Ah, coitadinha!" passando pelo "Mas que grande vaca". De tudo ouvi. Uma vez cheguei a vias de facto no futebol. Um tipo começou a gozar e eu perdi a cabeça. Há alturas em que é mesmo difícil suportar. Porque eu parecia sempre bem disposta mas por dentro sentia-me feia, incapaz, triste, revoltada, incompreendida.»

Ao longo dos anos fez várias dietas. De pouca dura. Tudo o que emagrecia tornava a engordar logo de seguida: «Isso foi-me tornando uma pessoa frustrada, derrotista e sem vontade de ir à luta. Este sentimento de não ser capaz reflectiu-se em todos os aspectos da minha vida.»

O emocional foi só mais um deles. Margarida só começou a namorar aos 26 anos. Tinha feito, nessa altura, uma dieta. Estaria com uns 120 quilos quando começou o namoro com um rapaz da terra dos pais. Mas o conforto emocional de ter alguém ao seu lado não era muito, porque ele tinha vergonha dela e não tinha muito trabalho a escondê-lo: «Ele era bombeiro e se era condecorado e havia uma festa, eu via que ele não queria que eu fosse. Por várias vezes fui eu própria a dizer que não queria ir, porque sabia que ele tinha vergonha de mim. Isto é muito doloroso.» Também na intimidade, o embaraço vinha ao de cima: «Era sempre tudo escondidinho, tudo tapadinho, o mais às escuras que fosse possível. Não queria que ele me visse sem roupa, nem pensar!» Esta relação, minada pela vergonha e pela culpa, durou quatro longos anos.

Porém, tudo estava à beira de mudar. E o dia 18 de Outubro do ano passado, o dia em que foi ao ginásio fazer uma avaliação física, foi só o primeiro passo dessa mudança absoluta na sua vida. Os exemplos observados no programa The Biggest Loser, o incentivo do personal trainer mas, sobretudo, a sua vontade imensa de perder peso fizeram, desta vez, toda a diferença. Ela sabe que a sua decisão e força de vontade tiveram muito peso no combate ao peso. Mas, por gratidão e modéstia, opta por dividir ao meio os louros: «Estarei eternamente grata ao Gonçalo por tudo o que me ajudou a alcançar. É um grande profissional e um dos pilares do meu sucesso. Faz-me exigir sempre mais de mim. Faz-me ir ao limite e superar-me a cada treino. Cinquenta por cento do meu sucesso é dele e, por isso, costumo dizer que ele neste momento já perdeu 33,5 quilos!»

O treinador retribui os galhardetes: «Sempre acreditei que a Margarida iria ser vencedora nesta batalha. Desde o primeiro dia que mostrou muita determinação e uma grande predisposição para lutar. Mas apesar de ter acreditado, ela surpreendeu-me sempre. Em cada treino tinha e tem uma entrega absoluta.» E, como se não bastasse de elogio, Gonçalo Fonseca conclui: «Estes oito meses foram para mim uma lição de vida e cresci muito como pessoa e como profissional por influência da Margarida. É um prazer poder trabalhar com uma pessoa como ela e um orgulho enorme ter dado o meu contributo para uma mudança tão importante na sua vida.»

Margarida Araújo mede 1,85 m e à data de entrega desta reportagem pesa 112 quilos. O seu IMC é de 33,3 (em Outubro era e de 52,9) e o seu corpo tem 25 quilos de massa gorda (contra 92 quilos em Outubro). Ainda é peso a mais. Mas são menos 67 quilos em oito meses. Margarida perdeu, sem cirurgias, comprimidos ou outros truques de «magia», 67 quilos! Provavelmente hoje, dia em que a revista chega às bancas, Margarida já terá uns 108 quilos. E no final do mês talvez já tenha chegado aos dois dígitos, na balança. É certo que lá vai chegar, mais dia menos dia.

Como se sente, agora? Essa é fácil: «Mais bonita, mais segura de mim mesma, mais capaz. Sinto-me uma vencedora e orgulho-me de cada conquista. Sinto-me uma atleta, saudável e cheia de energia. Quando entrei para o ginásio mal me equilibrava na passadeira. Andava a três quilómetros/hora e ao fim de 15 minutos já estava KO. Agora corro a 8,5 quilómetros/hora e faço cinco quilómetros em 26 minutos. Às vezes, quando vejo a minha imagem na montra de uma loja, não me reconheço. E se alguém me manda um piropo ainda não acredito que possa ser para mim. Sou mesmo outra pessoa, confiante e muito, muito feliz!»

Mário Botelho

Pesava 110 quilos

Pesa 80 quilos

Perdeu 30 quilos (num ano)

Tem 64 anos mas ninguém lhos dá. E não é por estar rodeado de gente de vistas curtas ou por simpáticos militantes. A verdade é que Mário Botelho não parece ter 64 anos. Porém, há três anos não era difícil acertar-lhe na idade. Não é que Mário seja uma espécie de Benjamin Button português (a personagem criada por David Fincher que rejuvenescia a cada ano que passava). Acontece que trinta fazem muita diferença na idade de um homem. Não serão trinta anos de diferença, mas dez serão seguramente.

Mário nunca foi gordo até deixar de fumar. Primeiro veio o prazer de comer, a explosão de sabores na boca. Depois, devagarinho, vieram os quilos a mais. A seguir, em 2008, reformou-se. Os anos de vida de secretária, na Direcção-Geral de Viação, tinham-se reflectido em gordura acumulada, um pouco por todo o corpo, mas com uma predominância abdominal considerável. Pesava 110 quilos.

Aquela barriga, que o tinha acompanhado nos últimos anos, começou então a incomodá-lo. Sentia-se pesado, cansado, velho. Foi então que, em Julho de 2008, decidiu consultar um nutricionista, que lhe passou um regime alimentar. «Não houve comprimidos ou poções mágicas. Tinha de reaprender a comer e tinha de cumprir as ordens à risca, se queria ser bem sucedido. Eu ia perfeitamente determinado e mentalizado. Mas é importante que nos ajudem a manter a nossa força de vontade e a minha mulher teve um papel fundamental. Deixou de cozinhar aquelas coisas que me engordavam e preparava sempre aquilo que eu tinha de comer.»

O segredo tinha pouco de segredo. Era mais do mesmo. Regras que todos sabemos de cor mas que poucos cumprem à risca: eliminar açúcares, álcool, gorduras, hidratos de carbono. Tomar o pequeno-almoço (uma fatia de ananás ou quatro morangos com duas colheres de flocos de aveia e um iogurte), comer a meio da manhã e a meio da tarde (uma peça de fruta, um iogurte), almoçar salada com pedaços de frango ou de peixe, jantar sopa (sem batata) e salada. Além disso, Mário teria de escrever num papel tudo mas rigorosamente tudo o que comia.

A perda de peso foi rápida e, em seis meses, estava muito mais magro mas ainda não mais novo: «Tinha a cara chupada, estava com um ar doente até. Achei que talvez precisasse de ginástica, para continuar a perder peso, por um lado, e para me dar força e um aspecto saudável, por outro.» Foi assim que se inscreveu num ginásio e superou todas as expectativas. A vida de secretária deu lugar a uma lufa-lufa de garoto: «Três vezes por semana faço uma hora e meia de exercício cardiovascular. Uma vez por semana faço hidroginástica, e uma vez por semana hidrobike (bicicleta dentro de água). Além disso, vou mais duas vezes por semana ao Sporting, onde faço duas aulas de ginástica de manutenção, de 45 minutos cada uma. Chego a perder novecentas calorias num dia.»

O exercício vicia, diz quem se meteu no vício. E pelos olhos de Mário Botelho vê-se que é assim. Brilham como nunca, quando fala da sua ginástica. E daí a mais um pouco, confidencia mais actividade, como se até se envergonhasse um bocadinho de tanta obstinação com o corpo: «Venho todos os dias a pé de casa para a escola [Mário vive na Estefânia e tem um colégio na Avenida 5 de Outubro, em Lisboa]. Ando sempre com estes ténis especiais, que estão desenhados para corrigir a postura e para fortalecer os músculos. Acho que já não sei caminhar devagar. Ando sempre a toda a mecha. E ainda faço massagens, duas vezes por semana.» O riso ocupa-lhe agora a cara toda. Desvendou, enfim, a sua tara, a mania que o ajudou a passar de umas calças 54 para umas 42. E dos 64 anos para os 54. No mínimo.

Mário perde, num ano, trinta quilos. Hoje pesa oitenta. Mede 1,72 m. E sente-se outra pessoa. «Sinto-me mais novo, mesmo interiormente. Saber que sou capaz de fazer tanto exercício, que mesmo as pessoas muito mais novas, como as minhas filhas, ficam espantadas com tanto desporto que o pai faz, dá-me uma grande satisfação, claro. Sinto-me orgulhoso. Tenho mais resistência, mais auto-estima. Quando olho para o espelho não vejo um homem de 64 anos. E isso dá-me uma força de viver muito grande. Quero - e acho - que posso viver muito mais anos. Antes parecia que não. Que estava mais velho, mais pesado, mais cansado e desistente. Muda tudo, de facto.»

As suas três filhas, Marta, Mariana e Margarida, sabem que é verdade. Que tudo mudou. E não podiam estar mais orgulhosas. Marta fala por todas: «A minha mãe, céptica em relação ao assunto devido a tentativas anteriores frustradas, era a pessoa que levava tudo mais à letra. Ela não acreditava que ele fosse capaz... bem vistas as coisas nenhuma de nós acreditava que uma mudança tão grande pudesse acontecer. Ainda assim, no meio das nossas dúvidas e incertezas não houve uma única vez que lhe demonstrássemos que não acreditávamos nele.» A família inteira acabou por sofrer um pouco na pele a mudança de atitude do homem da casa. A mãe passou a ter de inventar pratos apetitosos e pobres em calorias e, ao mesmo tempo, ser a má da fita, a polícia de serviço: «A Mariana sofreu por não poder partilhar a sua gulodice com o seu companheiro de todos os dias e a Margarida por nem sempre compreender porque é que aquele amigo disponível para a brincadeira estava por vezes maldisposto e insatisfeito.»

Com o passar do tempo e com os resultados obtidos, Marta garante que os dias melhoraram muito. Não só para o pai, feliz com a vitória, como para toda a família: «Todos puxavam uns pelos outros, todos começaram a comer mais saudavelmente e todos (ou quase todos) se envolveram em actividades físicas. Não foi fácil mas temos a certeza de que todos os esforços foram compensados! Hoje olhamos para ele como... nosso pai e modelo!»

Andreia Delgado

Pesava 115 quilos (é possível que tenha pesado mais mas houve uma fase em que não se aproximava da balança).

Pesa 67 quilos

Perdeu 48 quilos (em dez meses)

«Até hoje não acredito no que consegui. Passei toda a minha vida a ver um reflexo no espelho que não tem nada que ver com o que o espelho reflecte hoje. Em termos psicológicos é brutal, porque a mudança deu-se em dez meses - é muito pouco tempo para me habituar ao meu novo "eu". Às vezes tenho dificuldade em reconhecer-me. Afinal de contas, eu perdi uma pessoa!» A frase fica a ecoar na cabeça de quem a escuta, como uma impossibilidade. Andreia Delgado, 31 anos, repete: «Perdi uma pessoa, sim! Tenho uma prima e uma grande amiga que pesam, cada uma, 48 quilos. Sendo assim, a verdade é que eu perdi uma pessoa! E, por isso, sendo a mesma, sou outra pessoa. Sem dúvida mais feliz.»

Andreia Delgado pode bem orgulhar-se do seu feito. Em menos de um ano conseguiu, sozinha, perder 48 quilos. A diferença é abissal. É praticamente o mesmo que perdeu Ali Vincent, a primeira vencedora do programa americano The Biggest Loser que, em seis meses, perdeu 51 quilos. A diferença é que Andreia não teve toda uma equipa de televisão a puxar por ela. Nem um personal trainer que a obrigasse a fazer oito e dez horas de exercício por dia. Nem outros obesos com quem se comparar e identificar e competir. Nem outro prémio, no final da luta, que não fosse a sua nova imagem, a sua saúde renovada, e a sensação de uma vitória que poucos conseguem alcançar.

Andreia nasceu na Alemanha mas veio para Portugal, mais propriamente para uma aldeia perto de Miranda do Douro, aos cinco anos. Sempre foi gordinha. Recorda comentários depreciativos desde tenra idade e por isso foi crescendo com uma baixa auto-estima. Ainda assim, disfarçava. Era a bem disposta, a extrovertida, a porreira: «Se perguntar aos meus amigos, todos lhe dirão que eu me sentia bem e era feliz. A verdade é que sabia perfeitamente que era gorda. Era muito complexada e muito consciente do meu peso. Mas isso nunca me impediu de ter muitos amigos e de sair para todo o lado.»

Arranjar roupa não era, então, tarefa fácil: «Sempre foi difícil encontrar o que me servisse, principalmente calças. E além disso, acho que se parte do princípio de que não se tem estilo quando se é obeso. É algo que nos está vedado. É impossível encontrar roupa jovem, com estilo e bonita. Talvez se tivermos muito dinheiro isso seja possível. Mas a preços acessíveis é uma tarefa árdua.»

Apesar de disfarçar o seu incómodo com o excesso de peso, Andreia fez dezenas de dietas. Centenas, talvez. De todos os tipos. Geralmente muito restritivas, tão restritivas que passado pouco tempo desistia delas. Quando não estava em dieta, comia desregradamente mas acha importante referir que não era uma devoradora de alimentos: «A sociedade em geral pensa que comemos como uns monstros. É verdade que há relatos de pessoas que perderam muito peso com cirurgias ou mesmo com reeducação alimentar e actividade física e que, depois, dão entrevistas assumindo que comiam três ou quatro pizas seguidas ou dúzias de bolos. Mas nem toda a gente é assim. Eu assumo que não comia de forma correcta mas honestamente não era o suficiente para ter o peso tão elevado.»

Mas em Junho do ano passado, com 115 quilos, aproveitou o facto de o calor lhe reduzir o apetite e começou a comer menos. E começou, também, a fazer algo que nunca antes tinha feito e que ditou a grande mudança na sua vida: exercício físico. «Saía todos os dias para fazer caminhadas. Metia música com ritmo acelerado no iPod e lá ia eu fazer o meu trajecto. Inicialmente caminhava três a quatro vezes por semana. Fazia dois trajectos alternativos: um com 4,5 quilómetros e o outro de 5,5 quilómetros, dependendo dos dias. E comecei rapidamente a ver resultados.»

Num desses dias, já tinha começado a reeducação alimentar há cerca de um mês, saiu para uma das suas caminhadas. Estava um calor infernal mas Andreia recusou-se a ficar em casa. Como eram cerca de 16h00 e ainda não tinha comido nada desde o almoço, pegou numa maçã e saiu. Nesse instante, um vizinho passou por ela e, ao atentar na maçã gritou: «Estás sempre a comer, rapariga! Assim como queres emagrecer?» Andreia sentiu que aquelas palavras a feriam como punhaladas: «Consegue imaginar como me senti? A fazer regime disciplinadamente, a fazer o esforço de sair com o calor só para não deixar de fazer exercício, a comer uma simples fruta, e o comentário que ouço é este??! Foi horrível, desanimador, frustrante e humilhante. Fartei-me de chorar.»

Mas em vez de se deter nisso, Andreia optou por se focar nos seus objectivos, na sua luta e, sobretudo, nos excelentes resultados que estava a conquistar. Assim, começou a caminhar todos os dias. Diga-se que seguia por montes e vales (não tinha um ginásio, nem uma pista própria, nem sequer alcatrão), e quando o Inverno chegou tinha de arrastar os pés pela lama, que por vezes lhe chegava aos joelhos.

Além das caminhadas, começou entretanto a fazer abdominais, exercícios com pesos para os braços, agachamentos. Ao fim de uns meses, as caminhadas deram lugar a corridas. «Inicialmente corria o último quilómetro da minha caminhada. Um dia depois decidi correr um pouco mais e consegui. Dois dias depois aumentei o trajecto e em menos de uma semana já corria três quilómetros sem parar. A primeira vez que consegui chorei de felicidade. Uma semana depois fiz um desafio a mim própria: fazer o trajecto completo a correr. Nunca tinha pensado nisso porque era muito e porque havia muitas subidas exigentes. A verdade é que consegui. O ser humano não tem noção dos seus limites e acabamos por não conseguir muitas coisas porque nem sequer tentamos.»

Desta vez, ao contrário das anteriores, Andreia não sentiu vontade de desistir. Porque os resultados eram evidentes na balança, todas as semanas. Porque a roupa deixava de lhe servir. Porque começava a gostar de se ver ao espelho. Tudo graças ao exercício físico, que produziu efeitos mais drásticos, e se entranhou no seu dia-a-dia, como um vício que já não conseguia deixar.

Simultaneamente criou um blogue (que prefere manter no segredo dos deuses, até porque não assina com o seu nome) onde ia relatando as suas conquistas. Arranjou algumas «amigas» virtuais, também elas obesas em recuperação, e juntas deram início a uma saudável competição: «Havia várias pessoas que faziam dieta e contavam os seus progressos no blogue. Eu ultrapassei toda a gente. Outro dos meus segredos foi ter imposto metas graduais a mim própria: agora vamos ver quem desce dos oitenta quilos; agora vamos ver quem desce dos 75 quilos. Superar pequenos limites é mais estimulante do que pensar que se tem 115 quilos e o objectivo está quarenta ou cinquenta quilos mais abaixo.»

Andreia Delgado, engenheira zootécnica, a trabalhar e a viver em Espanha, é, sem sombra de dúvida, uma vencedora. Pesa 67 quilos, veste o 38/40. É um exemplo para todos os que lutam contra o excesso de peso. Porque tudo o que conquistou foi fruto da sua força de vontade, da sua luta, da sua garra. A irmã, Elisabete, não podia estar mais orgulhosa: «Ainda hoje estou sem palavras. A sério! Eu sou quatro anos mais velha e nunca a vi assim. Eu moro em Lisboa e ela está entre Espanha e Miranda do Douro, e cada vez que a encontro fico boquiaberta. Da primeira vez não a reconheci. Confesso que nunca me passou pela cabeça que ela conseguisse chegar tão longe e nem sabia que uma coisa destas era possível, sem cirurgia. Mas é possível. Ela foi capaz. E, neste momento, ela é a minha grande motivação. Quem sabe eu também não chego lá?»

Motivar os outros, contagiá-los com a sua história é, também, um dos objectivos de Andreia: «Quando comecei este processo queria perder peso mas não pensei conseguir tanto. Fartei-me de pesquisar e encontrei testemunhos de pessoas que perdiam quarenta, cinquenta ou sessenta quilos desta forma. Fiquei surpreendida porque sinceramente achava que não era humanamente possível perder tanto peso só com mudanças alimentares e exercício físico. Mas ao ler que era possível pensei: então vamos a isso! E agora quero dizer a toda a gente: é possível! Olhem para mim, é possível! Vamos a isso!»

Rodrigo Nogueira

Pesava 113 quilos

Pesa 75 quilos

Perdeu 38 quilos (num ano)

Parece que não foi nada com ele. Que perder 38 quilos foi a tarefa mais fácil da sua vida, uma coisinha simples, que se faz com uma perna às costas. E quem escuta fica sem saber se foi, de facto, assim tão fácil ou se desvalorizar o assunto faz parte da sua defesa, da forma como resolveu o assunto dentro de si. É um mistério complicado de resolver.

Rodrigo Nogueira tem 24 anos. Em 2009 pesava 113 quilos. Estava pesado, suava muito, parecia quase sempre demasiado adormecido ou apático para a vida. Quando colegas ou amigos referiam o seu excesso de peso ele não parecia - lá está - importar-se com isso. Como se ser gordo não fosse nada de especial, uns são gordos, outros são magros, e a diversidade é o que dá sal à vida. Era mais ou menos assim que respondia, com aparente desinteresse por uma questão que não tinha, afinal de contas, assim tanto interesse. «A verdade é que não posso dizer que era muito infeliz gordo e que agora sou muito feliz magro. Ok, tinha a alcunha de "gordo" em certos círculos, mas aposto que se tivesse o nariz grande também gozariam comigo por isso.» E, para que se perceba até onde chega a desvalorização que dá ao tema, continua: «Quando olho para trás lembro-me de não dar grande importância ao facto de ser gordo. Sei que a minha vida foi diferente da de pessoas que sempre foram magras, mas se calhar não dava muito relevo a isso. Se calhar não era uma pessoa muito superficial.»

À sua volta criou-se a ideia de que seria gordo para sempre. Não só por esta indiferença para com os seus 113 quilos mas também porque já vinha acumulando peso a mais desde os 5 ou 6 anos.

No entanto, o seu desdém para com este tema intrigava alguns. Como é que alguém que, certo dia, há nove anos, tinha acordado e decidido ser vegetariano, cumprindo a difícil decisão escrupulosamente, como é que alguém com esse rigor não o aplicava, também, a outro tipo de alimentos hipercalóricos, com o objectivo de emagrecer e ser mais saudável?

Mas, um dia, mais concretamente a 16 de Março de 2009, o clique deu-se: «Um amigo fazia anos e, quando fui lá a casa, ele e a irmã disseram que eu estava mais magro. E eu, que nem estava a fazer nada por isso, ouvi aquilo e soou-me bem. Mais magro? E se eu emagrecesse? Se calhar era giro ser magro! Ainda por cima, uns meses antes um amigo meu de infância também tinha perdido peso e eu andava a chamar-lhe, a brincar, traidor à causa da gordura. Uma coisa puxou pela outra e acabei por perder mais peso do que ele. Hoje é ele que me chama traidor.»

Depois daquele dia, em que lhe disseram que estava mais magro, Rodrigo começou a frequentar a casa de umas amigas que tinham um ginásio caseiro e, simultaneamente, eliminou os fritos, o açúcar e começou a comer sopas e saladas à noite. Ao mesmo tempo, começou a caminhar e, depois, a correr: «Acho que desde Agosto de 2009 comi, no máximo, três ou quatro gelados. Mas tudo isto não foi difícil, a sério que não. Decidi e foi só cumprir. Nunca tinha feito dietas. Desta vez fiz. E correu bem.»

Rodrigo perdeu 38 quilos, progressivamente. Vestia o XL, passou para o L. Depois experimentou o M e ficava-lhe bem. Hoje veste o S. E todas as roupas com etiquetas a dizer «Slim fit» são as que lhe ficam melhor. «Ainda hoje é estranho para mim vestir roupa de magro. Sou mais magro que os meus irmãos e sempre fui o mais gordo. É bom, claro. Tenho mais auto-estima, suponho. Mas não sei se mudei assim tanto por dentro. Por fora sei que mudei: deixei de ter mamas e de suar tanto!»

Joana Batista, 26 anos, conhece-o desde 2006. Tornaram-se grandes amigos e é ela quem desmonta um bocadinho este depreciar de um feito que é, queira-se ou não, extraordinário. «Um dia ele disse-me: "Decidi ser magro." Eu não acreditei que chegasse onde chegou. A verdade é que, como estava a morar na Madeira na altura, não assisti à progressão do peso nem me apercebi de que estivesse, efectivamente, a cumprir uma dieta. Uma vez, quando vim passar o fim-de-semana, passei por ele e não o reconheci. É incrível o que ele conseguiu sozinho! Passar de um tamanho tão grande (e eu vou com o Rod às compras, por isso sei do que falo) para um S, sozinho, com um défice de auto-estima como ele tinha e, ainda por cima, com alguns problemas pessoais, não pensei que fosse possível.»

Afinal, talvez haja um Rodrigo que mudou bastante, por dentro, com a passagem do XL para o S. Não se trata de superficialidade. Trata-se de uma mudança estrutural que é conquistada por alguém sem ajudas externas. «O Rodrigo é hoje outra pessoa. É-me difícil dizer se é melhor ou pior porque gosto dele de todas as maneiras, gordo ou magro, mas é claro que, em termos de auto-imagem, a percepção de si próprio como pessoa válida, não só no trabalho como na vida social, melhorou imenso.» Mudanças graduais, que não se fizeram sentir de um dia para o outro mas que, pelos vistos, fizeram-se sentir. «O Rodrigo foi ficando charmoso, desempoeirado, mais leve não só no peso corporal mas também nas preocupações e angústias. E como conseguiu tudo sozinho, é impossível ele não sentir agora que é capaz de tudo aquilo que quiser.»

Cláudia Madeira Pereira, psicóloga clínica

«Observar casos de sucesso pode motivar as pessoas a mudarem de vida.»

_Como cresce, emocionalmente, uma criança gorda ou obesa?

As complicações psicológicas associadas à obesidade são diversas. Talvez as que mais se destacam, na infância e na adolescência, sejam a baixa auto-estima e auto-imagem negativa, mas também a ansiedade, a depressão, problemas de comportamento e de aprendizagem, perturbações do comportamento alimentar (bulimia ou anorexia nervosa), enurese (emissão repetida de urina na cama ou na roupa), isolamento, abuso de álcool ou drogas e tentativas de auto-agressão e/ou suicídio (estes últimos mais frequentes na adolescência).

_ É importante que tenham precocemente acompanhamento psicológico?

Se estas crianças não forem alvo de intervenção atempada e adequada os problemas podem permanecer na adolescência e na idade adulta, deixando marcas profundas e condicionando negativamente a vida futura. Por isso recomenda-se a introdução da criança num serviço de acompanhamento multidisciplinar para que possa beneficiar não só de acompanhamento médico e nutricional, mas também de um devido acompanhamento psicológico que, quanto mais precoce e completo for, melhor será o prognóstico.

_ Diria que uma pessoa que se deixa chegar aos 179 quilos, como chegou uma das retratadas na reportagem, tem necessariamente um problema psicológico por detrás? Ou qualquer pessoa, por mais equilibrada que esteja, pode chegar a este peso?

As causas da obesidade podem ser diversas. Podemos apontar os factores emocionais e psicológicos mas não podemos esquecer o papel desempenhado pelos factores genéticos, comportamentais, sociais, culturais, entre outros. Deste modo, não podemos assumir que a obesidade tem necessariamente um problema psicológico subjacente, até porque na maioria das vezes não está na origem do problema apenas um mas uma combinação de vários factores que interagem para o desenvolvimento da obesidade.

_Uma das pessoas entrevistadas foi influenciada pelo programa americano The Biggest Loser, que passava na SIC Mulher. Ver casos de sucesso pode ser uma boa influência e, nessa medida, programas como este podem efectivamente ajudar a população obesa?

Sim, é frequente a motivação para a mudança aumentar na sequência da observação ou conhecimento de outros casos idênticos que resultaram em sucesso. A experiência vivida e contada na «primeira pessoa» por estes testemunhos acerca da obesidade, dos problemas psicológicos e sociais pelos quais passaram, da sua coragem e determinação para a mudança, acabam por impulsionar muitas pessoas com obesidade que observam e tomam conhecimento destes casos de sucesso. Daí que as pessoas refiram muitas vezes «se os outros conseguem, eu também hei-de conseguir!»

_Decidir emagrecer sem outra ajuda que não a da reeducação alimentar e da actividade física, é um acto de grande coragem e que requer muita força de vontade. Um acompanhamento psicológico pode ajudar a não desanimar, a não desistir?

Sem dúvida. O acompanhamento psicológico é fundamental não só por permitir intervir ao nível dos problemas psicológicos que se encontram muitas vezes associados à obesidade, mas também por permitir intervir na mudança dos comportamentos associados à perda de peso, optimizando os resultados do tratamento. A pessoa aprende a confrontar e resolver de forma mais adequada situações que antes eram difíceis para si, adquire uma percepção mais positiva acerca de si e do seu corpo, adquire estratégias para superar a depressão e aprende a desafiar e a substituir os pensamentos autodestrutivos por outros mais adequados e positivos. Assim, a pessoa vai percebendo que também tem qualidades e competências. E todas estas mudanças acabam por ser altamente motivantes.

*Cláudia Madeira Pereira desenvolveu, no seu mestrado, um Programa de Promoção de Estilos de Vida Saudáveis para Adolescentes. Encontra-se a realizar Doutoramento em Psicologia na Faculdade de Psicologia da Universidade de Lisboa, tendo sido concedido ao seu projecto de doutoramento - «Promoção de Estilos de Vida Saudáveis: Um Contributo para a Investigação no Combate à Obesidade na Adolescência» - uma bolsa de investigação pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia.

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