"Queremos dar aos estudantes tempo para interiorizarem os assuntos e voltarem aos livros"
Ouvimos falar de bactérias hospitalares, culpamos os hospitais. Na realidade, ao tomarmos antibióticos destruímos as más bactérias e as boas, as que nos defendem. Este é um tema essencial na investigação de hoje, como explica este cientista do ITQB, especialista em esporos, que acaba de lançar, com Maria Mota do IMM e Miguel Soares do IGC, um novo programa de doutoramento. "Queremos criar uma nova geração de cientistas", diz ele, que anda preocupado com a forma absurda como administramos o tempo.
Acaba de lançar um programa de doutoramento. Que programa é este?
É um programa financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia e envolve o ITQB, o IMM e o IGC. Pela primeira vez, pretende fazer a interface não só entre estas instituições, na formação académica avançada, mas também explorar a interface dos micro-organismos com os seus hospedeiros. Temos 16 bolsas para atribuir, as candidaturas estão abertas até 3 de janeiro de 2018.
O que é essa interface?
Todos os organismos estabelecem relações mais ou menos estáveis com os micro-organismos, nomeadamente as bactérias. Essas relações podem ser favoráveis às duas partes mas nem todas as bactérias são patogénicas ou causam doenças. Só temos a perceção de que existem em situações em que essa relação leva a doenças infecciosas. Queremos formar uma nova geração de cientistas interessados em tirar partido das muitas valências das três instituições.
Porque é importante criar um novo doutoramento?
É difícil criar um doutoramento que explore um ângulo novo e que coadune as práticas das diferentes instituições. Informalmente, somos todos grandes amigos, conhecemo-nos há muitos anos. Outra coisa é estruturar um curso que traga algo de novo. Há uma série de questões relacionadas com a presença constante das bactérias nas nossas vidas - basta lembrar o recente surto de legionela, e já não é o primeiro - e com a questão da resistência aos antibióticos, um problema de saúde pública gravíssimo que poderá ameaçar a nossa espécie. E podemos pensar nas grandes epidemias da história, como a peste negra [século XIV], bactéria só descoberta no início do século XX.
Este tipo de cooperação entre instituições é novo?
Existia com base na cooperação entre as pessoas. Mas a capacidade de comunicação agora é muito superior e também gera problemas. Há uma tão grande diversidade de acesso a conteúdos que às vezes é difícil fazer opções. Queremos fomentar um retorno a um certo classicismo. Ter tempo para as pessoas estudarem e interiorizarem os assuntos, tempo para voltarem ao livro de texto e não se restringirem ao slide que o professor mostra, tempo para pensar problemas. Queremos acentuar a necessidade de os estudantes investirem muito no trabalho individual. No meu doutoramento, tinha todo o tempo do mundo para estudar e aprofundar os assuntos com a minha marca, explorar o que me interessava. Nós queremos que os estudantes tenham esse tempo.
Não é um retrocesso?
Não é um retrocesso. É muito importante reconhecer tudo aquilo que as tecnologias nos trazem, e o momento inacreditável que vivemos em termos de acesso a tudo e mais alguma coisa, e a capacidade de transformar essas ferramentas ao nosso dispor em algo de original, em deixarmos uma marca, usando tudo o que está à nossa disposição. Mas o mais importante é um investimento pessoal, um interesse, uma curiosidade que têm de ser fomentados ao deixar as pessoas seguir essa veia. É preciso tempo e é preciso que seja acarinhado.
A sua investigação principal tem que ver com esporos. Perguntei a várias pessoas e ninguém sabe o que é.
Há vários tipos de esporos. Os esporos mais resistentes são feitos por um grupo particular de bactérias muito antigo que apareceu neste planeta mais ou menos há 2,8 mil milhões de anos. A origem da vida na Terra está entre os 4,5 e os 4,8 mil milhões de anos. Se encontram condições ambientais extremamente adversas, formam um tipo de célula diferenciado inerte que resiste a tudo, mesmo a condições, simuladas ou reais, extraterrestres. No limite, podem viajar no espaço. São provavelmente as estruturas vivas mais resistentes deste planeta. Há esporos isolados de cristais de sal com 250 milhões de anos, quando só havia um super-continente na Terra, chamado Pangeia. Foram isolados esporos com 40 mil anos no trato gastrointestinal de abelhas preservadas em âmbar. São verdadeiras cápsulas do tempo. Se alguém quiser preservar o seu DNA é só pô-lo dentro de um esporo e pode guardá-lo.
Para que interessa esta investigação?
Somos movidos pela curiosidade, temos a missão de conhecer o mundo que nos rodeia e somos parte da longa cadeia de homens e mulheres que, desde a invenção da ciência e da filosofia há milhares de anos na Grécia Antiga, tomou em mãos esta aventura. É inerente à espécie humana, somos curiosos por natureza, queremos saber. Mas também queremos saber porque daí podemos tirar lições e ferramentas para nos capacitarmos melhor para os desafios.
Por exemplo, neste caso?
Um dos organismos patogénicos do momento, que acumula nos ambientes hospitalares, é uma bactéria chamada clostridium difficile que forma esporos. Como é anaeróbia, a maneira de se disseminar é na forma de esporo, porque o esporo resiste a tudo, inclusive ao oxigénio. As estirpes epidémicas produzem muitos esporos que se espalham, passam de doente para doente, na forma de aerossóis, são ingeridos. O esporo germina no trato gastrointestinal e as formas capazes de crescimento ativo da bactéria produzem toxinas que causam os sintomas de uma série de doenças que podem levar à morte. Nos Estados Unidos há cerca de 14 mil mortes anuais devidas a doenças gastrointestinais causadas por Clostridium difficile.
Essa é a bactéria hospitalar?
É uma delas. Queremos saber se podemos interferir com a maneira como o esporo é construído para que resista a tudo, até aos desinfetantes usados nos hospitais. Os esporos são muito difíceis de erradicar mas não servem para nada se não germinarem. No trato gastrointestinal, o esporo germina em resposta a sais biliares. Como é construído? Como germina? Como podemos interferir com estes processos e com a produção de toxina para que a bactéria não seja virulenta, ou tão virulenta? Há trabalhos no IMM e no IGC sobre a microbiote humana, isto é, as bactérias normais do nosso trato gastrointestinal que antagonizam a germinação dos esporos de clostridium. Quando nos hospitais as pessoas são tratadas com antibióticos de largo espectro, essa comunidade é dizimada e o clostridium difficile pode crescer e causar doença.
Vi no seu gabinete a data da chegada do [James] Cook [1728-1779] à Antártida. O que significa?
Eram as três viagens do Cook. Numa das viagens, ele esteve muito perto da Antártida mas teve de voltar para trás porque o gelo era de mais e o navio e a tripulação estavam em perigo. Nós somos ambiciosos, queremos descobrir coisas, queremos ir onde mais ninguém esteve antes e às vezes não é possível e é preciso fazer recuos estratégicos para depois voltar a avançar. Isso é parte do processo científico.
E quando não têm bons resultados?
Não fazemos experiências para verificar algo, nós fazemos experiências para testar algo. Temos uma hipótese mas ela não está necessariamente correta. Se a experiência for bem feita, gera sempre conhecimento. Quanto mais estranho o resultado, maior é o ganho potencial. Claro que é bom alguém aparecer a dizer: funcionou exatamente como esperávamos. Sentimo-nos bem porque temos de caminhar num sentido, temos de ter segurança no que fazemos. Mas os momentos mais excitantes no laboratório são aqueles em que os resultados são estranhos ou a experiência não funcionou.