Quénia. "Bao", o jogo mais antigo do mundo
Eu de um lado da mesa e, do outro, a jovem Kerubo, que significa "menina nascida nas planícies". No meio de nós, o passatempo nacional do Quénia. O "Bao" significa "tabuleiro" na língua suaíli e faz parte dos jogos tradicionais de estratégia e perícia, ou "Mancala", sendo considerado o jogo mais antigo do mundo, com evidências arqueológicas que datam de milhares de anos. Ambos os jogadores distribuímos sementes ou pedras nos buracos do tabuleiro composto de quatro linhas com oito compartimentos. Cada um de nós tem o seu campo, o resto pertence ao adversário. O objetivo do jogo é conquistar todos os quadrados do adversário. A jovem com quem eu jogava é uma guia que trabalha para uma agência de viagens situada em Nairóbi. Enquanto jogámos, talvez para me desconcentrar da "competição", ela foi explicando que a origem do jogo é milenar, mas logo lamentou que era das poucas mulheres que sabia jogar, pois "é coisa de homens". Os jogos "Mancala" nasceram ali, disse-me convictamente, apesar de o nome vir do árabe, já se espalhando por todo o mundo. No Quénia, não é difícil ainda ver jogar algum dos jogos. Na ausência de tabuleiro, pode construir-se um buraco na terra ou esculpir na pedra. O "Bao" é um jogo que não possui elementos de sorte nem informação oculta, mas é um dos mais exigentes da família "Mancala", também considerado perfeito para familiarizar as crianças com conceitos matemáticos e estratégicos. Ao centro do jogo, existem duas casas especiais chamadas "nyumba"; o jogador a sul controla a primeira e a segunda linhas, e o jogador a norte controla a terceira e a quarta linhas; a segunda e a terceira linhas são chamadas centrais; existem 64 pedras ou sementes e vinte delas são colocadas inicialmente no tabuleiro, as restantes começam o jogo na reserva, ou seja, fora do tabuleiro, e são colocadas uma a uma na fase inicial do jogo. Vence quem primeiro conseguir capturar todas as sementes da linha central do adversário ou deixar o adversário sem qualquer movimento. No final do jogo que disputei com Kerubo, a "menina" das planícies, confrontei-me com a derrota mais do que previsível. Aliás, eu nunca soube jogar Xadrez, porque haveria de me superar no "Bao"? Este jogo de semeadura pode ser analisado pela teoria dos jogos combinatórios. Além de ser um jogo utilizado para o lazer, pode ser usado para desenvolver o raciocínio lógico e treinar conceitos de matemática, como a adição e a subtração. Além disso, o jogo promove as habilidades em planeamento e estratégia, já que, para vencer, é preciso pensar adiante, tal como o Xadrez, as Damas, o "Shogi", o "Go", o "Renju" ou o "Xiang Qi". Como se trata de "jogos de semeadura", expressão utilizada pelos jogadores, lembrei-me de falar com Kerubo acerca da presença dos portugueses no Quénia e das suas eventuais sementes que dariam flor. Ela sabia-o e confessou-me que o seu marido tem sangue com origem nesses tempos, dada a sua cor menos escurecida. Desde o século XV que, efetivamente, a presença de Portugal se manteve durante dois séculos e foi garantida pela obtenção de bases navais pela força e por acordos de aliança com os locais, que deveriam pagar impostos ou comercializar exclusivamente com os portugueses. Aquela era uma terra fértil para o comércio e para novos desenlaces. O Quénia está situado na África Oriental. A parte ocidental faz parte do sistema de depressões do vale do Rift, que deu origem aos grandes lagos africanos, e essa zona do país é banhada por dois dos maiores: o lago Vitória e o lago Turkana. As falhas do Rift são rodeadas de montanhas, algumas das quais de origem vulcânica, que atingem o ponto mais alto no centro do país. A leste e a sul, o relevo suaviza-se, em especial junto à fronteira da Somália, onde se estende uma extensão significativa de planície que deu nome à minha companheira de jogo e de visita. A propósito do que falámos e jogámos, disse-lhe o seguinte, a finalizar o último dia de viagem: "Estou convicto de que a única voz que o teu futuro ouve é a voz da sua semeadura", ou não fora o Quénia o berço da humanidade e "Harambee" ("Vamos trabalhar juntos") o lema dos quenianos, tal como no jogo mais antigo do mundo, mas, nesta circunstância, um de cada lado do tabuleiro.
Jorge Mangorrinha, professor universitário e pós-doutorado em turismo, faz um ensaio de memória através de fragmentos de viagem realizadas por ar, mar e terra e por olhares, leituras e conversas, entre o sonho que se fez realidade e a realidade que se fez sonho. Viagens fascinantes que são descritas pelo único português que até à data colocou em palavras imaginativas o que sente por todos os países do mundo. Uma série para ler aqui, na edição digital do DN.