Quem tem culpa da crise migratória?

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Deu no The Telegraph (27/9/23): na semana passada, falando em Washington, DC, para uma plateia reservada, a ministra britânica da Administração Interna afirmou que, sem um controlo da imigração, "a cultura britânica vai desaparecer". Segundo ela, a ênfase das políticas migratórias para o Reino Unido e a Europa, nos últimos 25 anos, esteve concentrada no "falhado dogma do multiculturalismo" (expressão dela), em detrimento da integração e coesão social.

A ministra mencionou os 108 mil migrantes que atravessaram ilegalmente o Canal da Mancha desde 2018 e os 2,8 milhões que entraram este ano nos Estados Unidos, para afirmar que a imigração descontrolada torna difícil à sociedade "adaptar-se e acomodar-se às novas culturas e costumes".

Segundo ela, a atual crise migratória confirma a necessidade de reformar a Convenção das Nações Unidas para os Refugiados (1951), a qual, além de, na sua visão, estar ultrapassada, "criou um absurdo e insustentável sistema de incentivo à imigração ilegal.

A governante britânica exortou todos os países a fazerem como o Reino Unido, recusando-se a conceder asilo a imigrantes que cheguem através de rotas ilegais e inseguras, limitando o conceito de "imigrante" e adotando soluções (?) como a lamentável (o adjetivo é meu) política de deportação do Ruanda.

Conforme noticiou o Telegraph, a ministra fez estas declarações na sede do think tank direitista American Enterprise Institute, sedeado na capital americana. Detalhe interessante: a referida ministra, tão temerosa do eventual desaparecimento da "cultura britânica" por causa da imigração, chama-se Suella Braverman e é filha de imigrantes mauricianos e quenianos.

O Alto-Comissariado da Organização das Nações Unidas para os Refugiados reagiu imediatamente às declarações de Braverman: "O que é necessário não é a reforma ou uma interpretação mais restritiva da Convenção [para os refugiados], mas uma aplicação mais efetiva e consistente da mesma, em especial do seu princípio de partilha de responsabilidades", afirmou o organismo.

Concorde-se: a atual maka migratória é efetivamente muito séria. A ministra britânica, por mais execrável que seja o pressuposto das suas declarações, isto é, todos os preconceitos históricos e sentimentos imperialistas que lhes estão subjacentes (sem esquecer, dada a sua origem pessoal, o "viralatismo"), tem razão quando afirma, por exemplo, que as acomodações para os imigrantes, o aumento das vagas nas escolas, a expansão dos Serviços de Saúde, a melhoria das vias públicas ou a contratação de mais forças policiais não caiem do céu. De igual modo, as questões culturais também não podem ser simplesmente ignoradas. Tudo isso, entretanto, é a consequência e não o fundo do problema.

O que quase ninguém menciona são as causas estruturais da crise migratória que vivemos. O desequilíbrio das relações internacionais é o primeiro fator por detrás dessa crise. Sim, o neocolonialismo existe: o Ocidente Alargado, estruturado em torno das antigas potências coloniais e os seus herdeiros, grupo que engloba hoje os países desenvolvidos, continua a olhar para os países menos desenvolvidos como meros fornecedores de matérias-primas ou então de mão de obra barata; as suas políticas de cooperação com as nações africanas, asiáticas e sul-americanas, os seus pacotes de "ajuda", as "receitas económicas" dos organismos que ele controla desde o fim da 2ª Guerra Mundial são profundamente extrativistas e predadoras, não contribuindo para o efetivo desenvolvimento dos países pobres, mas apenas, na maioria dos casos, para a formação, nesses países, de uma classe dominante rentista e parasitária.

A segunda causa da presente crise migratória que afeta o mundo é precisamente o facto de, em grande medida, os países menos desenvolvidos serem governados por uma classe dominante que está mais interessada em satisfazer os seus interesses pessoais e não os das respetivas nações. Países que sequer são capazes de atender às necessidades básicas das suas populações, quanto mais de pensar e executar efetivos projetos de desenvolvimento nacional, preferindo esbanjar o dinheiro em obras faraónicas e inúteis (ou, no mínimo, não-prioritárias), como podem esperar que os seus cidadãos não procurem desesperadamente por uma vida melhor em qualquer outro lugar?

Nesta matéria, portanto, não há inocentes: todos os países, em geral, têm culpas no cartório.

Escritor e jornalista angolano

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