Quem foi Antonio Inoki?

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Pyongyang, Coreia do Norte. 29 de abril de 1995. 190.000 pessoas num enorme recinto. Uma moldura humana que, até aos dias de hoje, dificilmente será igualada. No seu centro, encontra-se um ringue, quatro postes e três cordas que o envolvem. Dentro dele encontram-se dois homens. Um é uma figura esbelta, loira e bronzeada. É arrogante, define-se por aquilo que usa e pelo seu estilo. Tem vestido um robe lindo e luxuoso. Encontra na fama, nas mulheres e no dinheiro a razão de ser da sua vida. Representa tudo aquilo que os norte-coreanos aprenderam a odiar em quatro décadas. À sua frente, pelo contrário, está uma figura alta, de queixo farto, que acena às pessoas e olha com parcialidade para o seu olhar. É a primeira pessoa em dois dias em quem aquele mar de gente pode confiar. O norte-americano Ric Flair e o japonês com uma forte ligação à Coreia Antonio Inoki encabeçam o maior evento de pro-wrestling alguma vez visto. É este o main-event do Collision in Korea!

A descrição que acaba de fazer é o de um dos principais momentos da carreira de Antonio Inoki, o pro-wrestling, promotor e político japonês que faleceu no passado dia 1 de outubro. Inoki foi, sem dúvida, um dos nomes mais importantes do pro-wrestling japonês e do pro-wrestling em geral, um dos percursores do desporto a que chamamos hoje MMA (artes marciais mistas), e um político japonês bastante influente pela sua história, pelo símbolo que era, e pelas suas relevantes ações ao longo dos anos.

Tratou-se de uma morte noticiada pelo Diário de Notícias em Portugal, e, lá fora, em jornais bastante reputados como A Marca e o The Guardian. Mas, afinal, quem era este pro-wrestler, e o que fez durante a sua vida para a sua morte merecer ser notícia também em Portugal? Muito simples. Antonio Inoki merece o maior dos reconhecimentos, não só por aquilo que fazia dentro do ringue, como também, e essencialmente, por aquilo que representou fora dele. Consistiu verdadeiramente num símbolo de união de pessoas e povos, com uma história riquíssima, numa vida cheia onde demonstrou sempre a coragem necessária para enfrentar qualquer desafio. Antonio Inoki era, provavelmente, o principal embaixador do pro-wrestling em todo o mundo.

Apesar de o principal centro polarizador do pro-wrestling se encontrar, desde sempre, nos Estados Unidos da América, consistindo aquela numa modalidade intrínseca na cultura dos norte-americanos, um segundo centro polarizador encontra-se, logo de imediato, no Japão, onde a modalidade é carinhosamente chamada de "puroresu". Pois bem, Antonio Inoki foi um dos percursores do pro-wrestling no Japão, tendo sido discípulo de Rikidozan, lutador de origem coreana, que iniciou praticamente a modalidade em terras nipónicas nos primeiros anos do pós-2.ª Guerra Mundial, quando os Estados Unidos da América exerceram forte influência no Japão.

Rikidozan e Inoki conheceram-se ainda no Brasil, país onde Inoki viveu durante uns anos após a Segunda Grande Guerra, onde já ganhara vários prémios enquanto lutador, e onde já tinha a destreza suficiente para ensinar outros tantos jovens que iniciavam a sua carreira na luta.

Uma das suas grandes obras, e que persiste até hoje como a principal empresa promotora do wrestling japonês, foi a criação da New Japan Pro-Wrestling (NJPW) em 1972, onde a história relevante da sua carreira enquanto lutador teve lugar. Desde logo, criou um intenso método de treino, que puxava e levava os seus estudantes a limites nunca antes vistos. Acabou por desenvolver, por isso, uma espécie de culto de personalidade entre os lutadores com quem trabalhava. Da mesma forma, com o público, passou progressivamente a ser algo mais do que uma estrela do pro-wrestling, e a ter uma relação mais intensa, que ia muito para além disso.

Para isso contribuiu acentuadamente a luta que teve, já em 1976, com o famoso pugilista Muhammad Ali. Foi um combate famosíssimo e que recebeu, na altura, atenção por parte de todos os cantos do mundo, sendo diversamente divulgado e noticiado. Acabou igualmente por ser um dos espetáculos mais bizarros vistos à época, pois colocou frente-a-frente pro-wrestler e pugilista. É um combate que muita gente considera ter iniciado aquilo que viria a ser denominado de MMA.

Mais tarde, em 1979, Inoki chega também a vencer o campeão da WWF - atual WWE, que domina o mundo do pro-wrestling hoje em dia -, também no Japão. Todavia, por existir controvérsia no resultado desse combate, o seu reinado não é, até hoje, reconhecido pela WWE.

Não obstante, Inoki não foi só isto. A sua vida riquíssima atingiu voos ainda mais altos quando entrou no mundo da política em 1989, ano em que é eleito para a Câmara dos Conselheiros no Japão. E logo em 1990, sem medo, e mostrando uma enorme coragem, Inoki viaja sozinho para o Iraque no que na altura foi uma viagem diplomática não oficial. Inoki saiu do conforto o seu país para negociar com Saddam Hussein a libertação de 41 reféns japoneses, e conseguiu que 36 dos mesmos fossem libertados. Para isso, na mesa das negociações, teve de ceder a algumas das exigências do líder iraquiano, nomeadamente, comprometeu-se a participar no "Festival pela Paz" em Bagdad, e, de forma mais chocante, converteu-se mesmo ao Islão.

Mas as ações de Antonio Inoki que manifestaram sempre a sua escolha pela via da união, do diálogo e da diplomacia, em detrimento da via do conflito e da segregação não ficaram por aí, e tampouco a sua carreira enquanto pro-wrestling. Afinal, por que não juntar os dois? É que já em 1989 Inoki havia organizado um pequeno evento de wrestling em Moscovo, com o intuito de promover a cooperação pacífica, com a Guerra Fria a chegar ao fim. Infelizmente, porém, não existem muitas informações sobre esse evento, pois não foi algo de muito grandioso e, afinal, em 1989 o processo de mudança da URSS já se encontrava em marcha.

Mas é então em 1995 que o reputado lutador decide voltar a utilizar o pro-wrestling precisamente para a defesa desse caminho. Inoki propõe-se a realizar um enorme evento de pro-wrestling na Coreia do Norte, um país que vivia - e vive até hoje vive - numa violentíssima ditadura comunista, totalmente fechada ao mundo, em que os seus cidadãos não conhecem outra realidade que não a vivida neste seu país.

O referido evento nasceu da cooperação entre a NJPW e a World Championship Wrestling (WCW), empresa promotora norte-americana que era, à época, a principal rival da WWF (agora WWE), na luta pelo domínio do pro-wrestling americano, e foi designado de "Collision in Korea". Este mesmo evento veio mesmo a bater um recorde, sendo, até hoje, o evento de pro-wrestling que contou com mais pessoas a assistir, tendo tido o total de 350 000 pessoas a assistir entre os dois dias (165.000 no primeiro dia, e 190.000 no segundo). Uma curiosidade é, no entanto, que todas essas pessoas foram obrigadas a assistir ao evento, sem saber muito bem o que é que aquilo seria, ou como deveriam sequer reagir.

É um dos eventos mais recordados pelo circunstancialismo em que teve lugar. Afinal, como é que os cidadãos e políticos norte-coreanos lidariam com a chegada ao seu país dos capitalistas e imperialistas norte-americanos, que representavam todo o mal e o demónio que a ditadura comunista ensinava às suas gentes? E como é que reagiriam com a chegada dos japoneses, que, poucas décadas antes, haviam invadido o seu país, provocando a morte de milhares de coreanos?

O resultado consistiu em eventos e respetivos combates que decorreram sob uma atmosfera nunca antes vista. É que o objetivo de tudo aquilo que os pro-wrestlers fazem no ringue ou fora dele consiste em provocar uma reação do público, seja ela negativa ou positiva, ou seja, de aplauso e de apoio, ou de vaias ou rejeição, na típica divisão entre babyface (o herói) e heel (o vilão) - linguagem técnica da modalidade.

Mas, aqui chegados, como iriam os lutadores provocar qualquer tipo de reação num público que não conhecia o que era, à época, o pro-wrestling moderno? Como seria possível vaiarem ou aplaudirem o que não reconhecem e entendem? Isso levou a que os eventos acabassem por decorrer perante um silêncio ensurdecedor, num ambiente tenso e estranho para todos os envolvidos, desde os fãs aos lutadores.

Mas essa foi a realidade que se verificou apenas até ao main-event (combate principal) do segundo dos dois eventos, que teve como protagonistas Antonio Inoki e Ric Flair, o reconhecidíssimo lutador norte-americano. É precisamente este o combate cuja atmosfera se relata no início do presente artigo.

Ora, se as pessoas não tinham, até esse momento, razão para torcer por algum lutador, esse já não seria o caso, apesar de tudo, com Antonio Inoki. Na verdade, os norte-coreanos sabiam que o mesmo era discípulo de Rikidozan, que era, como dito no início do presente artigo, coreano. As pessoas sentiram então uma ligação com Inoki, quase como se se identificassem com ele, com a sua história, e com a sua figura. Isso levou-as, precisamente, a torcer por ele, e o silêncio ensurdecedor que se ouvia antes deu lugar aos aplausos e a um barulho enorme que se começou a fazer. Tudo pelo herói que aquelas pessoas precisam naquele momento.

Acabou aquele combate por ser o único que os lutadores que foram naquela viagem contam até hoje ter visto e sentido interesse por parte dos norte-coreanos, e em que os mesmos acabaram até por se divertir com o que estavam a assistir. Portanto, Antonio Inoki acabou por ser o elo de ligação entre lutadores, promotoras, pessoas e povos. Conseguiu, por duas noites, a cooperação entre gentes de dois países que não se falam, e uniu as pessoas pelo desporto e pelo entretenimento.

Inoki acabou em 2007 por se afastar da NJPW, e tentou recriar a sua ideia para o pro-wrestling de outras maneiras, embora menos bem sucedidas.

Voltou, no entanto, à política e à Câmara dos Conselheiros em 2013, e reiniciou novamente esforços por um diálogo mais intenso com a Coreia do Norte, país que, por aquela altura, começou a testar misseis no pacífico, e iniciou uma escalda de confrontação militar mais agressiva com o Ocidente, situação que infelizmente temos até hoje. Inoki entendia que o Japão não se devia negar a tentar dialogar com a Coreia do Norte, e não podia desistir da diplomacia. Pretendeu sempre usar a sua ligação a Rikidozan para ser o elo de ligação entre as pessoas e os povos, e evitar conflitos maiores.

Aqui chegados, é, apesar de tudo, legítimo defender tudo o contrário do que Inoki defendia. Isto é, é legítimo entender que não se deve negociar com ditaduras, que não se tolera escaladas de armamento e testes militares que indiquem uma vontade de provocar conflitos bélicos. É legítimo entender que, de outra forma, se legitimam esses regimes e essas atitudes.

Porém, no presente artigo, não é quanto a essa questão que se pretende fazer qualquer juízo de valor.

Serve este artigo apenas para enaltecer a história e as qualidades de um homem que nos deixou recentemente, um homem com uma história riquíssima, que deve ser divulgada. Um pro-wrestler, um promotor e um político que será recordado por muitos e bons anos e décadas, e que, espero eu, se mantenha reconhecido como um dos homens culturalmente mais influentes e acarinhados por todos os fãs de pro-wrestling, bem como pelo mundo da política.

Resta agradecer ao Diário Notícias por ter noticiado a sua morte.

Licenciado em Direito

Presidente da Juventude Popular de Valongo.

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