"Quem causou isto não deve sair impune"

Peter Boone, economista, professor de Harvard e blogger do NYT acusado de manipulação de mercado em Portugal, foi considerado inocente sete anos depois de começar o caso
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Ao fim de sete anos vê este caso chegar ao fim e confirmar-se a sua inocência. Em que medida é que esta acusação prejudicou o seu trabalho?

Como se sentiria se, do nada e sem razão óbvia, fosse acusado num país estrangeiro de um crime que podia resultar em cinco anos de prisão? Quando se ouve estas palavras, a vida muda de forma dramática. Acredito que o valor mais importante que se pode ter é a reputação de ser uma pessoa honesta, íntegra e justa. É por esses valores que me conduzo. A acusação de que fui alvo pela justiça portuguesa chocou-me a mim e a todos os que me conhecem. Cresci no Canadá, onde acreditamos que os procuradores e os reguladores dos mercados financeiros são pessoas honestas e bem-intencionadas.

Inicialmente, assumi que a CMVM e o Ministério Público (MP) se tinham enganado e que poderia desfazer o engano apontando as evidências e respondendo às suas questões, pelo que escrevi vários comunicados e me encontrei com o procurador em várias ocasiões. Apontei-lhes as provas que tinham consigo desde o início, revelando que todas as alegações retiradas dos relatórios da CMVM (e posteriormente da acusação do Ministério Público) estavam erradas e contrariavam as evidências. E assumi que a CMVM tinha interpretado mal a situação e que esta e o MP iriam examinar as provas e deixar cair a acusação criminal. Mas em vez de as observarem, regulador e MP simplesmente avançaram com a acusação contra mim, baseada em falsas premissas facilmente refutáveis pela evidência disponível. Quando a acusação chegou, o procurador incluiu a queixa absurda de que eu ajudara a organizar uma conspiração com um cliente da Salute Capital para desvalorizar a dívida portuguesa. Nem a CMVM nem o MP se deram sequer ao trabalho de ouvir quem diziam estar envolvido nesta conspiração à exceção da minha pessoa. Simplesmente fabricaram estas falsidades e acusaram-me.

Esta forma de investigar foi o que me trouxe mais preocupação e me fez mais mal. Pior ainda quando o procurador, após ter saído a acusação, encorajou a cobertura mediática do caso. Foi nessa altura que optei por mudar de advogados e comecei a temer que as autoridades portuguesas não fossem confiáveis para liderar o processo com honestidade. Tive sérios receios de acabar na prisão. Fui aconselhado a não falar sobre o processo até chegar a tribunal, pelo que tive de aguentar as manchetes horríveis e os artigos que relatavam estas alegações falsas do MP e da CMVM.

Foi um grande alívio quando o primeiro juiz arquivou o processo assim que o ouviu. Eu testemunhei perante ele em tribunal e isso fez-me acreditar que algumas das autoridades portuguesas funcionam devidamente. Fiquei extremamente aliviado quando os três juízes do tribunal de recurso pronunciaram a sua sentença. Tinham obviamente lido muitos documentos do processo e pensado nas questões, e levaram o tempo necessário para fundamentar a sua decisão. São verdadeiros profissionais.

Como é que esta saga afetou o meu trabalho e a minha reputação? A resposta é simples: a minha vida ficou congelada. Eu e o professor Johnson deixámos de escrever artigos, despedi-me da Salute Capital e renunciei ao cargo de direção na administração de uma casa de investimentos. Não se pode trabalhar no setor financeiro quando se tem um processo-crime sobre a cabeça. Deixei de escrever sobre política económica de todo. E gastei uma pequena fortuna em apoio legal e custos processuais.

Um dos momentos mais difíceis foi aquele em que tive de ligar ao meu pai, um homem muito honesto e íntegro, e explicar-lhe esta situação horrorosa. Hoje ele tem quase 90 anos e nessa altura estava muito doente. Tive sorte, porque ele entendeu perfeitamente o ridículo das acusações e sabia que eu nunca me envolveria no tipo de crimes de que estava a ser acusado.

Tem ideia de quando vai avançar com a ação contra o Estado português e vai pedir uma indemnização?

Ainda não decidi quando ou o valor da indemnização que vou pedir, mas vou avançar por dois motivos: primeiro, pelo que gastei neste processo e por considerar que ele nunca deveria ter existido; segundo, porque a integridade destas instituições exige que as pessoas ajam quando as suas ações não são adequadas. É tentador simplesmente esquecer esta saga, mas as pessoas que levaram a isto não devem sair impunes. Não podemos permitir aos reguladores dos mercados financeiros e procuradores que usem os seus poderes para fins políticos, vinganças e experiências. Espero que a liderança da CMVM e do MP analisem cuidadosamente este caso e entendam os erros que foram feitos. Se receber indemnização, todo o dinheiro que exceda os custos legais que tive será doado a instituições de caridade.

Acredita que a acusação que lhe foi movida tinha por intenção dissimular o que estava a acontecer em Portugal - nomeadamente pelo então ministro das Finanças, Teixeira dos Santos?

Não sei o que levou a esta investigação, mas acredito que alguns responsáveis portugueses estavam zangados por eu e o professor Johnson, tal como muitos outros, termos criticado as suas políticas. Eu e o professor vivemos e/ou trabalhámos sobre economias de muitos países (Rússia, Indonésia, Ucrânia, Turquia, Guiné-Bissau, Argentina, Polónia, EUA, Canadá, Japão, etc.) e fomos muitas vezes críticos das suas opções, mas esta foi a primeira vez que uma figura de Estado nos acusou de deliberadamente enganar os leitores para obter ganhos. Ironicamente, os nossos posts sobre os problemas de Portugal revelaram-se os mais certeiros dos artigos que escrevemos. Logo após termos escrito o primeiro, o meu coautor, Simon Johnson, respondeu ao que o então ministro das Finanças disseram sobre ele nos media, para explicar que se não se consegue ter um debate aberto sobre as políticas se arrisca a acabar com más políticas. Além das críticas públicas que nos foram feitas pelo então ministro das Finanças, também o ex-Presidente falou contra nós. E a investigação da CMVM a mim começou apenas cinco dias depois da publicação do artigo, por isso alguma coisa moveu o regulador a mexer-se tão depressa.

O Jornal de Negócios foi uma ajuda preciosa para nós, para entendermos o contexto económico da crise na primavera de 2010 e a forma como mesmo os jornalistas portugueses estavam frustrados com a compreensão tácita de que os problemas do país só podiam ser atribuídos a bodes expiatórios e não a quem conduzia as políticas. Foram especificamente artigos como o de Pedro Santos Guerreiro, O inimigo está entre nós, o de Camilo Lourenço, Não somos a Grécia, Soares dixit, e um artigo irónico de Nuno Garoupa intitulado As três razões da crise portuguesa http://www.jornaldenegocios.pt/opiniao/detalhe/as_trecircs_razotildees_da_crise_portuguesa que nos ajudaram a entender. E com tudo isto, acabámos por perceber que alguns responsáveis governamentais queriam um bode expiatório para descartarem os problemas de Portugal como um "ataque especulativo". Vermos isto na Imprensa portuguesa ajudou-nos a entender que o processo era uma forma de nos atirarem as culpas para cima.

Tinha algum tipo de interesses que pudessem influenciar a sua visão do que estava a passar-se no país?

Não. A minha ocupação na altura era dar conselhos de investimento. Estudávamos a situação mundial e recomendávamos investimentos com base no que entendíamos estar a acontecer. O nosso objetivo era prever de forma certeira o que iria passar-se.

O MP defendia que a Salute Capital teria beneficiado com a desvalorização da dívida portuguesa, mas ignorava que muitos dos nossos clientes perderiam dinheiro se as obrigações portuguesas perdessem valor. Ao avaliar a totalidade do nosso portfolio, o tribunal de recurso reconheceu que a Salute Capital não tinha interesse em ver a dívida portuguesa desvalorizar-se. Os investimentos portugueses eram uma fração mínima do portfolio dos clientes - tornando a posição irrelevante em qualquer caso.

Por outro lado, o reporte dos meus interesses e afiliações seguia as melhores práticas internacionais entre os profissionais ligados a investimentos que escreviam sobre políticas económicas. O meu disclaimer era semelhante aos que são usados por Warren Buffett, Bill Gross, Mohammed El-Erian, Howard Davies (ex-presidente do regulador dos mercados financeiros no Reino Unido), etc. Este género de disclaimer clarifica que o autor é um profissional e que tem ligações profissionais aos mercados financeiros, pelo que podem dar conselhos de investimento. O tribunal de recurso reconheceu que eu segui as melhores práticas internacionais e que o meu reporte era adequado.

Como vê o papel da CMVM em todo este caso?

Não entendo porque é que os responsáveis da CMVM estavam tão determinados em acusar-me de um crime apesar de terem todos os indícios que provavam que não o tinha cometido. Sai muito caro a um país que os responsáveis de um órgão regulador abusem dos seus poderes (que se pretende que previnam crises financeiras e assegurem o funcionamento saudável do sistema financeiro) para fins políticos e/ou sejam pessoas com pouco conhecimento dos setores que é suposto regularem.

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